Escrever é desaguar. É manchar a vida com palavras. É repetir a boniteza de descobrir-se sujeito de si. Me corta o coração quando descubro que alguém com quem converso me diz que não sabe escrever. Com 16 anos abri uma turma para alfabetização de jovens e adultos. Toda quinta-feira à tarde, das 14h às 16h, recebia um grupo de umas 20 mulheres numa sala emprestada do centro espírita e lá ensinava a ler e a escrever. Ensinava poesia, música, prosa. Fazíamos uma roda de conversa, com caderno e lápis. Juntávamos letras, sílabas e formávamos palavras. E palavra lida sem pausa é um milagre. Era a revolução saber que uma de nós havia conseguido ler o destino do ônibus sem pedir ajuda. Criávamos um universo a partir das palavras reunidas. Barthes tinha razão, linguagem é pele.
Não sei por onde andam aquelas senhoras queridas, que em troca me enchiam de carinho, abraço, pedaços de bolo e orações. Sempre acho que Deus cuida de mim por causa delas. Isso aumenta minha responsabilidade. Acho que acordei hoje meio Leminski, fazia tempo que não me sentia tão sentimental. Deve ser a saudade de pessoas tão amadas e já tão distantes. Deve ser a saudade da minha afilhada querida, Martina, que vi tão pouco durante essa pandemia, ou a saudade de minha nona que agora em abril faz três anos de sua morte. Talvez saudade também de me encontrar com os amigos lá no Zarabatana, tomar uma taça de vinho e acompanhar a apresentação de alguém talentoso que o Tum Tum trouxe. Saudades de ir ao cinema e depois participar de um debate, ver uma exposição, olhar no olhos dos meus alunos e sentir o cheiro do café depois do intervalo. Saudades da sala de aula. Meus alunos estão aí, pelo online e podem confirmar, nunca saímos antes das 22h30 da sala de aula. Saudades deles se oferecendo para apagar o quadro, carregar minha bolsa e livros e contando de si, de suas dores, sonhos e conquistas. Oxalá as memórias não me abandonem.
Dias atrás ouvi de uma aluna que jamais fizera pão na vida, estava agora, aos 75 anos, encantada com a questão da fermentação e só de imaginar que havia ali um tipo de vida, se emocionava. Também me emociono com o pão, com o alho frito, com o feijão em corda, com o poder do louro e a luz do sol recolhida para dentro da fruta. Passei a respeitar o quiabo, a beleza da berinjela, a cor da farinha de mandioca torrada igual ao Saara e há quase um ano não como carne, de nenhum um tipo. Eu e cerca de quase 30 milhões de brasileiros.
Estar em sala de aula tem sido uma constante em minha vida. Nunca pensei em ser professora. Sou, também, e ainda ensino a juntar palavras. Escrever é exercitar o coração. Já já tem mais uma turma de escrita criativa iniciando. Mas agora com cada um em sua casa. Estamos longe dos abraços e do cheiro do café. Isso do online nos salva, mas nos cansa demais. Talvez porque o que mais gostaríamos era de poder entrar na sala de aula, procurar uma cadeira, mais a frente ou ao fundo, ficar observando os colegas de curso, arriscar um oi e puxar conversa. Mas a vida ainda é maravilhosa. Talvez mais que antes. Escrever é um tesouro. Escrever juntos é dividir silêncios. Mesmo com um nó no peito causado pela distância imposta e pelas agruras dos insensíveis, a existência pode ser rascunhada como um texto provisório e passada a limpo, se você tiver coragem de encarar as próprias falhas.