Não parece, mas é terça de carnaval. Não há som de bateria, nem trânsito bloqueado por conta do desfile, nem corre-corre para terminar de confeccionar a fantasia. Não há rodas de cerveja, nem o som dos cavacos sendo afinados. Uma terça silenciosa. Por outro lado, a televisão e as redes sociais trazem notícias sobre aglomerações em praias e o lixo que sobra para o dia seguinte. Gente que se junta em meio à pandemia, cujos estandartes são os da falta de bom senso, falta de respeito, negacionismo e imbecilidade. Desculpem a sinceridade. Eu não sou uma pessoa carnavalesca. Meu sangue gringo não me deixa ter o remelexo lindo de quem sabe dançar um samba, infelizmente. Faço coro a todos que sabem a importância desta festa e da não realização dela neste ano. Então o que vemos no noticiário não é carnaval. Não julguem. Isso que estamos vendo se chama estupidez e sempre aconteceu desde que o ser humano é ser humano.
Adoro Cartola e seu samba tão rico de realidades. Naquela letra infalível que destrona nossa onipotência de sermos superiores ou melhores. Aquela que diz, ainda é cedo, amor, mal começaste a conhecer a vida... então ouça bem, amor, preste atenção, o mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos, vai reluzir as ilusões a pó. Um samba psicanalítico, sem muitos adereços e paetês, duro como a vida e o dia a dia. Um joelhaço kleiniano em nosso rim direito. Sim, é preciso abrir mão das nossas idealizações para encontrarmos um instante de alívio no cotidiano. A vida não é e nunca será como queremos que ela seja, nem o outro e nem nós mesmos. A vida não nos dá a mínima. Tanto é que passaremos por ela, iremos embora, seremos esquecidos e ela continuará a existir. Assim como o mundo, para aqueles que conseguem perceber, é um moinho. Por mais duro que seja constatar isso, nos ajuda a suportar a realidade, inclusive essa de pessoas que aproveitaram o feriado de carnaval para lotar as praias, ouvir som alto e espalhar seu lixo físico e metafórico por onde passaram. Uma destruição das regras, do contrato social, uma afronta aos cuidados, um narcisismo patalógico associado a um certo grau de autodestrutividade. Como diria Freud, uma pulsão de morte.
É preciso entender que somos afetados significantemente por nossa criação, história e meio. Crescemos com os mesmos valores de quem veio antes de nós. Fazemos algumas concessões, mudamos algumas pequenas atitudes, mas somos parecidos com aqueles que nos criaram. Mas esse entendimento não serve para justificar nossa raiva ou impotência. Porque também somos o resultado de nossas escolhas, inconscientes ou não.
Nesses dias de festividades coletivas as angústias se apresentam no consultório. Um misto de raiva, inveja, desejo de festa, medo de morrer, as questões políticas, a vacina. Sim, a realidade nos atravessa e nos causa ansiedade, principalmente porque nos damos conta de que ela não depende de nós. Respiro junto e penso sempre que precisamos perseverar. Ou como diz o samba de Noel Rosa, viver alegre hoje é preciso, conserva sempre o teu sorriso, mesmo que a vida esteja feia.