Dias atrás um livrinho, assim mesmo, no diminutivo, caiu em minhas mãos. É um livro de Krenak chamado A vida não é útil. O li numa sentada ao sol. E senti o que ele escrevia percebendo a erosão da vida em mim mesma. Somos atravessados pela realidade, pelas angústias, pelo Outro, pelos sonhos e desejos, pela modernidade, pela tecnologia, pelo digital, pelas ansiedades e enquanto consumimos tudo isso, somos automaticamente, consumidos por isso tudo. Parece que estamos devorando a vida e tudo por onde passamos. Devoramos as relações amorosas com raiva e violência. Devoramos os amigos com inveja. Devoramos o mundo sujando-o, destruindo a natureza e desrespeitando o planeta. Devoramos até mesmo a ideia de Deus enganando a si e aos outros aparentando sermos pessoas de bem quando na verdade vivemos nos porões mais escuros plenos de afetos perturbados. Krenak fala sobre a possibilidade de pisarmos na terra de forma tão suave que pouco depois de nossa passagem, não seria possível rastrear nossas pegadas. Mas não é isso que fazemos. Nossas pegadas estão cada vez mais profundas e denotam o rastro de uma humanidade completamente desorientada.
Quando a pandemia chegou para nós, lá em março, houve um momento de susto. Talvez um medo de morrer, de saber-se finito. Houve até uma esperança de se pensar um mundo diferente deste que estamos transformando em cova. Chegamos em dezembro. A segunda onda da covid-19 também chegou. Mas o número de mortos já não nos impacta mais. O desgoverno é da ordem do comum. Perdemos o pudor e voltamos a postar nas redes sociais nossos encontros e festas, aglomerando pessoas com bebidas e sem o uso de máscara. Como se pudéssemos agir impunemente. Foi por esse tipo de atitude petulante que conseguimos reduzir o planeta e nós mesmos em seres tão desprezíveis. Criamos justificativas para agir sobre o mundo como se ele fosse uma matéria plástica em que podemos pisar, chutar, esticar e ele não vai se romper. Mentira. Não é só o planeta que não resiste a nossa ação colonizadora e perversa, nós mesmos não sobrevivemos a nós.
Nunca fomos tão doentes. Nosso corpo sofre. Nossa mente sofre. Nossa alma sofre. Perdemos a capacidade de pensar, de se preocupar, de imaginar, de narrar, de sentir, de amar, de se autonutrir. Ficamos com o mais podre de nós mesmos, o ódio, a inveja, a raiva. Nos tornamos mercadoria. Queremos estar disponíveis em prateleiras e desejamos que alguém nos leve para casa, assim nos sentiríamos menos desamparados. Mas somos uma espécie, não muito mais evoluída e bastante similar ao mais escroto ser humano que já habitou esse planeta. Matamos, abusamos, compramos, debochamos, desmatamos, agredimos, aceitamos a corrupção, fazemos guerra, adoecemos e nos envenenamos com medicações, porque parar para sentir o mal que somos e que fizemos ao outro, dói muito. Temos uma vida esculhambada e desejamos esculhambar a vida do outro. Não queremos a dor, queremos apenas o prazer.
O ano está quase terminando. Não se iludam, 2021 será muito parecido com 2020 e confesso, nesse mundo que habitamos, triste, consumista, materialista e doente não tenho interesse nenhum, por mim, ele também já podia ter acabado há muito tempo. Como Krenak, não faço questão de adiar o seu fim.