Para a funcionária pública Ana Carolina Quevedo Cerbaro, ser uma família acolhedora é um ato de doação e troca. Ela é uma das três famílias de Passo Fundo, no norte do Estado, que estão aptas a receber temporariamente crianças que vivem em abrigos da cidade — um número considerado baixo quando comparado com o tamanho da cidade.
O programa Família Acolhedora existe há 11 anos e funciona dentro da Secretaria da Cidadania e Assistência Social (Semcas). Através dele, crianças e adolescentes de até 18 anos, afastados dos responsáveis após terem seus direitos violados, podem ser acolhidos e protegidos temporariamente enquanto aguardam adoção ou retorno para a família.
Na cidade, há 27 crianças vivendo em dois abrigos à espera do acolhimento familiar. Desde agosto do ano passado, a prefeitura aumentou o aporte financeiro do projeto na tentativa que mais famílias se coloquem à disposição do cuidado que traz benefícios aos assistidos. No momento, outras duas famílias têm cadastro em andamento.
— É muito mais saudável para eles estarem num acolhimento familiar porque vão se preparando para retornar à família de origem ou para uma adoção. Nesse período, eles aprendem costumes e tratamentos de como é a rotina de uma família. Mas, pelo baixo número de famílias cadastradas, muitas crianças não têm essa opção — explica a assistente social responsável pelo programa, Franciele Fernandes.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define que os menores podem permanecer no programa de acolhimento por, no máximo, 18 meses. No entanto, o fim do vínculo deve observar o melhor interesse da criança, como explicou a juíza de direito da Vara da Infância e Juventude do Fórum de Passo Fundo, Lisiane Sasso.
— É possível prorrogar o período de acolhimento se verificado que a reinserção na família biológica ainda não se mostra recomendável e/ou se ainda não foi possível a colocação em família substituta através da adoção. Durante todo período de acolhimento, a situação da criança e de sua família de origem são periodicamente reavaliados pelo Juizado da Infância e Juventude e por uma equipe técnica multiprofissional — explicou a magistrada.
Essa avaliação passa, também, pelo plano individual de atendimento de cada criança e adolescente, um documento onde estão as ações a serem tomadas para a proteção e bem-estar do menor. O objetivo é o fim do período de acolhimento o mais breve possível, seja através de ações com a família biológica, visando a reintegração, seja na busca de familiar com quem possa ficar ou um novo núcleo família, para adoção.
Benefícios aos menores acolhidos
Hoje, Passo Fundo tem três famílias acolhedoras e duas delas acolhem crianças. Segundo a juíza Lisiane, há dificuldade no cadastro de novos núcleos familiares, especialmente pelo desconhecimento sobre o programa e dos benefícios aos menores acolhidos, em vez de instituições.
— O acolhimento familiar proporciona a redução de traumas e a reorganização desses indivíduos de maneira muito mais eficaz que o institucional e essa informação precisa ser amplamente divulgada entre a sociedade, como forma de incentivar o cadastramento de novas famílias no programa — reiterou.
Além disso, outros benefícios são visíveis nas crianças e adolescentes acolhidos em núcleos familiares. Ali, os menores têm a possibilidade de criação de vínculos afetivos e o atendimento das necessidades emocionais e psicológicas, o que contribui para o desenvolvimento de habilidades, em especial socioemocionais. As famílias, por sua vez, não ficam desassistidas.
— As famílias acolhedoras recebem suporte e orientação de profissionais, o que ajuda na criação de um ambiente propício para o desenvolvimento saudável das crianças acolhidas, facilitando o processo de (re)integração à família biológica ou substituta, bem como a adaptação do acolhido às rotinas familiares e sociais — completou Sasso.
Quem acolheu dois de uma vez
No caso de Ana Carolina, a família acolheu duas crianças de uma vez: uma menina de sete e um menino de nove anos. Irmãos, eles vivem com Ana e o esposo há 10 meses, quando foram afastados dos pais biológicos por presenciarem agressões sofridas pela mãe. Vizinho da família de origem, o casal tomou a frente de assumir os cuidados dos pequenos e se inscreveu no programa da Semcas.
— No início houve um choque de cultura porque já temos duas crianças que tinham uma educação diferente da deles. Tivemos que os integrar e a convivência também exige mais da gente. Mas aos poucos fomos nos conhecendo, tudo com muito diálogo e explicando o limite de cada um deles — lembra Ana.
Tudo compensa quando vemos o sorriso deles e as expressões, sinais não ditos em palavras
RESUME ANA CAROLINA
Mesmo em pouco tempo, a evolução dos pequenos é notória, tanto no desenvolvimento pessoal quanto no convívio social. Na escola, as professoras relatam melhora no comportamento, com maior interação com os colegas e salto no desempenho escolar. Segundo Ana, tudo está relacionado com a educação: hoje eles gostam de ir a escola e aprenderam a confiar nos adultos.
— Eu costumo dizer que nem sempre são flores, mas a parte difícil já passou. Tudo compensa quando vemos o sorriso e as expressões, sinais não ditas em palavras, que percebemos o presente que é. Ver os olhos maravilhados com coisas comuns que eles não tinham.
— Eu deixo meu apelo para que famílias que tenham capacidade de se doar, que se coloquem à disposição. É gratificante se doar para outro ser que vem machucado, e ensiná-los e aprender a amar — finaliza Ana Carolina.
Quem já está no segundo acolhimento
Habilitados no programa desde 2022, o casal de aposentados Ana Maria Soares de Melo e João Roberto Beine já foi lar para duas crianças da cidade. A primeira passou pelos cuidados deles aos oito anos e permaneceu na casa por um ano até ser adotada.
Agora, eles acolhem uma segunda menina, de 12 anos. Diagnosticada com o primeiro grau do Transtorno do Espectro Autista (TEA), ela já está na segunda passagem pelo acolhimento do casal após uma tentativa de reaproximação com os pais biológicos, sem sucesso. Com dificuldade para se comunicar, ela faz acompanhamento médico para explorar as capacidades dela.
— Levamos em médicos, fonoaudiólogos e procuramos meios para que ela desperte. O que a gente busca é a independência dela e estimular ao máximo as potencialidades que ela tem, e sabemos que é capaz. No fim, recebemos muito mais do que a gente está dando. É um prazer poder ajudar uma criança e fazer o melhor por ela — resume Ana Maria.
Para além da parte da saúde, a família também tenta potencializar a interação social da adolescente e os estudos. Atualmente, ela frequenta três dias na rede municipal e outros dois na Escola Olga Caetano Dias, especializada no atendimento de crianças autistas.
— Não tivemos dificuldades com ela, pois é uma criança muito dócil. Quando ela veio a primeira vez, quase não falava e saiu daqui contanto histórias, com uma dicção quase perfeita. A gente sabe que daqui um tempo ela pode não estar mais aqui, mas é um trabalho necessário e a vida é tão boa quando fazemos algo bom por alguém — reflete João.
Como ser uma família colhedora
Para ser habilitado para ser uma Família Acolhedora, os interessados passam por uma série de avaliações, como condições de saúde física e mental e histórico de bons antecedentes. Não há restrição de sexo ou estado civil. Veja abaixo a lista completa:
Critérios
- Ter entre 21 a 65 anos, respeitando uma diferença de 16 anos entre o acolhido e a pessoa responsável;
- Declarar desinteresse em adoção;
- Residir em Passo Fundo;
- Apresentar boas condições de saúde física e mental;
- Possuir bons antecedentes.
Uma vez habilitados, a família recebe o suporte financeiro da prefeitura de um salário mínimo e meio e dois salários para os casos de crianças com deficiência. O tempo de acolhimento varia, podendo ser estendido pelo tempo necessário para regularizar a situação da criança ou adolescente. Todo o trabalho é acompanhado por uma rede de proteção que inclui o Poder Judiciário e o Conselho Tutelar.
— A família que se habilita tem total liberdade para acompanhá-los nas atividades diárias, e tem guarda provisória para viagens fora do Estado. Há acompanhamento da Semcas e eles precisam rotineiramente nos informar o que está acontecendo com aquela criança, fazendo assim todo acompanhamento deles e do acolhido —resume Franciele.
O cadastro pode ser feito pelo site da prefeitura de Passo Fundo, que também oferece maiores informações sobre o serviço.