É bastante preocupante quando um líder que se diz democrata insiste em ignorar os fatos e não economiza malabarismos retóricos para negar a existência de um regime autocrático. Esta é a postura reiterada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em relação à Venezuela. O entendimento externado pelo petista contrasta inclusive com a visão majoritária de outros importantes expoentes da esquerda da América do Sul.
Lula voltou a minimizar as evidências de que as eleições presidenciais venezuelanas não serão justas e livres
Na quarta-feira, Lula voltou a minimizar as evidências de que as eleições presidenciais venezuelanas, marcadas na semana passada para o dia 28 de julho, não serão justas e livres. O presidente brasileiro deu a entender que o pleito organizado pelo país governado com mão de ferro há 26 anos pelo chavismo mereceria crédito. “Presunção de inocência” foi a expressão utilizada. Até poderia ser uma suposição válida se não existisse uma profusão de indícios de irregularidades em processos eleitorais anteriores.
Não é apenas na totalização dos votos, em tese, que uma eleição pode ser maculada. No caso venezuelano, o judiciário controlado pelo ditador Nicolás Maduro alijou da disputa os principais candidatos adversários. O caso mais recente é o da ex-deputada María Corina Machado, que após vencer as prévias da oposição foi considerada inelegível por “irregularidades administrativas” que teriam sido cometidas quando era parlamentar, entre 2011 e 2014. Outro oponente, Henrique Capriles, também não pode concorrer.
O presidente Lula fez na quarta-feira uma comparação equivocada com a sua situação em 2018 ao dizer que “não ficou chorando” e indicou outro nome para a disputa presidencial. Na época, o petista foi considerado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), uma corte independente do Executivo. No caso venezuelano, os principais oponentes são impedidos por decisões de um judiciário subserviente a Maduro. Não há democracia quando a oposição não dispõe das mínimas condições de se organizar e participar de uma disputa eleitoral com paridade de armas. A eleição venezuelana, deve-se lembrar, é normalmente realizada em dezembro. Agora, de súbito, foi adiantada para julho, no dia do aniversário do ex-presidente Hugo Chávez. A presença de observadores internacionais na data do pleito, portanto, está longe de ser garantia de um resultado justo.
Mesmo que Lula não queira admitir, os acontecimentos que demonstram a existência de uma autocracia na Venezuela são abundantes. Foram denunciados por organismos reconhecidos como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a Comissão de Direitos Humanos da ONU. As arbitrariedades contra opositores não se limitam a questões eleitorais. A opressão a dissidentes inclui denúncias de prisões, execuções extrajudiciais, torturas e estupros. Inexiste liberdade de imprensa no país. No mais recente episódio, o governo tirou do ar e a emissora de TV alemã Deutsche Welle (DW) por exibir uma reportagem crítica à gestão Maduro. O despotismo venezuelano vai além, com a captura das instituições, como o parlamento, o judiciário e as forças armadas.
O Tribunal Penal Internacional (TPI) investiga o governo Nicolás Maduro por crimes contra a humanidade. O relatório da ONU de 2019 que apontou 6,8 mil assassinatos extrajudiciais na Venezuela foi apresentado pela então alta comissária da organização para os direitos humanos, Michelle Bachelet, ex-presidente de esquerda do Chile. Outros líderes progressistas do continente também condenam o governo venezuelano. É o caso do atual mandatário chileno, Gabriel Boric. O presidente colombiano, Gustavo Petro, desde o ano passado se afasta de Maduro. O ex-presidente uruguaio Pepe Mujica já definiu mais de uma vez o regime de Caracas como uma ditadura. Lula e o PT parecem cada vez mais isolados até mesmo na esquerda sul-americana na teimosia de não reconhecerem o óbvio e o desastre produzido pelo chavismo na forma de miséria para a população venezuelana.