Como militar, deputado federal ou presidente da República, Jair Messias Bolsonaro sempre confiou em uma espécie de inimputabilidade, mesmo afrontando leis e regras de conduta das funções que exerceu. Foi bem-sucedido até sexta-feira, quando foi considerado inelegível por cinco votos a dois pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Bolsonaro não poderá participar de nenhum pleito por oito anos após ser condenado por abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação, irregularidades cometidas na infame reunião de 18 de julho do ano passado, quando convocou embaixadores estrangeiros para despejar afirmações falsas sobre o sistema eleitoral do país e sobre ministros do TSE e do Supremo Tribunal Federal (STF).
A legislação não deixa dúvida ao considerar irregular o uso de bens públicos em proveito de intenções relativas a eleições
Não foram propriamente as leviandades proferidas no vexatório evento que condenaram Bolsonaro, mas o uso considerado ilegal pela Corte das dependências do Palácio da Alvorada e de servidores públicos para objetivos relacionados à eleição que se aproximava. O ato destinado a desacreditar a Justiça Eleitoral foi ainda veiculado ao vivo pela TV Brasil, rede pública custeada pelos impostos pagos por todos os brasileiros e que por essa razão não deveria ser utilizada para fins politiqueiros.
A legislação não deixa dúvida ao considerar irregular, e sujeito a punição, o uso de bens públicos e meios de comunicação oficiais em proveito de intenções relativas a eleições, com propósitos que nada têm a ver com o interesse público ou institucional. Foi um flagrante desvio de função. O evento foi ainda transmitido ao vivo pelas redes sociais do presidente, em uma intenção clara de levar seus seguidores a acreditarem que Bolsonaro estaria revelando a representantes estrangeiros um suposto complô para prejudicá-lo no pleito de outubro. Há óbvia lógica na conclusão de que se tratava de parte de uma estratégia para, no futuro, tentar justificar perante o mundo uma contestação do resultado eleitoral.
Além dos fatos do dia 18 de julho, é impossível esquecer que há um contexto. A tal reunião com os embaixadores não foi uma situação isolada e desconexa de acontecimentos pretéritos e posteriores. No caso, uma campanha incansável para difamar o sistema eleitoral do país, internacionalmente reconhecido como eficiente e transparente, com uma saraivada de declarações fraudulentas e várias vezes didaticamente desmentidas. A série de desconfianças infundadas semeadas e incitações, como se temia, teve um desfecho trágico: a depredação e a invasão violenta dos prédios dos três poderes, no dia 8 de janeiro, uma grave tentativa de se chegar à ruptura institucional. Roteiros e minutas encontrados no celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e na residência do seu ex-ministro da Justiça, com os passos para um golpe e uma busca por dar verniz legal à derrubada do Estado democrático de direito, são novas peças que se encaixaram para explicar toda a turbulência atravessada pelo país nos últimos anos.
Jair Bolsonaro é alvo de uma profusão de processos. Apenas na Justiça Eleitoral, são mais 15. Como qualquer cidadão, o ex-presidente tem direito a uma análise justa de seus casos, observando-se apenas o que dizem as leis e a Constituição, com amplo direito de defesa. O ex-presidente ainda pretende recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) da condenação do TSE. São poucas as chances de um recurso prosperar, mas é sua prerrogativa e deve ser respeitada. Parece, no entanto, que chegou a hora de começar acertar as contas com a Justiça por seus atos.
O pensamento político de direita tem a aderência de significativa parcela da população, adepta do desenvolvimento pelo empreendedorismo, o livre mercado e outras ideias que, ao longo dos séculos, alavancaram o progresso científico e econômico da humanidade. É parte legítima da vida democrática nacional e da saudável disputa de propostas de nação – que, ao fim, se dá nas urnas. Mas seja qual for o espectro ideológico, há um problema quando a figura a pretensamente personificar um projeto age como se estivesse acima da lei e das instituições. Lideranças se renovam e, agora, há a oportunidade de partidos e correntes de viés conservador se reorganizarem em busca de nomes verdadeiramente compromissados com as linhas da Constituição e capazes de representá-los nas próximas eleições.