No momento em que os futuros governantes do país negociam com o Congresso Nacional a aprovação da PEC da Transição, que abre espaço no orçamento da União para despesas na área social além do teto de gastos, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística aperta o botão da urgência ao revelar um novo retrato das condições de vida da população brasileira. A Síntese dos Indicadores Sociais, divulgada na última sexta-feira pelo IBGE, documenta o agravamento da extrema pobreza entre os brasileiros no ano passado e mostra que, pelo menos, 17,9 milhões de pessoas enfrentam dificuldades para sobreviver. Como se sabe, um dos principais indicadores da extrema pobreza é a fome — e a fome não pode esperar por articulações políticas demoradas.
Evidentemente, essa urgência também não significa que o novo governo deva receber carta branca para gastar o quanto desejar, sem compromissos com a responsabilidade fiscal. Significa apenas que o principal desafio do país — e não apenas dos governantes e representantes políticos — é garantir logo condições de sobrevivência para a parcela mais carente da população. Nesse contexto, os programas oficiais de transferência de renda continuam sendo imprescindíveis, mas devem ser acompanhados por medidas complementares que futuramente livrem os beneficiados da dependência e lhes abram portas para um futuro digno.
Pelo menos 17,9 milhões de pessoas enfrentam dificuldades para sobreviver
Para passar das boas intenções à prática, nem é preciso pesquisar muito. Relatório publicado em julho passado pelo Banco Mundial, instituição que concede empréstimos para países em desenvolvimento, sugere medidas específicas para reduzir a desigualdade e a pobreza no Brasil. Aponta pelo menos uma dezena de sugestões, entre as quais a adoção imediata de um programa nacional de recuperação escolar, apoio a desempregados com foco na reinserção das mulheres no mercado de trabalho, requalificação de trabalhadores para o ambiente digital e promoção da igualdade por meio de políticas fiscais. Também faz parte do pacote a criação de uma medida oficial de mensuração da pobreza para que as informações sobre o assunto se tornem mais confiáveis.
O trabalho do IBGE também escancara as desigualdades regionais. Enquanto Estados do Norte e do Nordeste têm mais de 20% da população vivendo abaixo da linha de extrema pobreza, no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina esse percentual não chega a 3%. A questão do tamanho da fome nacional sempre suscita dúvidas e controvérsias. Não faz muito, uma organização não governamental denominada Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional informou, com base em levantamento realizado em mais de 12 mil domicílios, que o número de brasileiros convivendo com a insegurança alimentar chegava a 33 milhões. A informação foi prontamente contestada pelo ministro Paulo Guedes, da Economia, que a rotulou de “narrativa política” destinada a prejudicar a imagem do governo. Sem uma coleta de dados confiável e com abrangência nacional, sempre haverá espaço para dúvidas.
Porém, mesmo nesse contexto de versões contaminadas, há um fato inquestionável, ao alcance dos olhos de quem não se deixa cegar por ideologias ou preferências políticas: as milhares de pessoas que pedem ajuda nos semáforos das grandes cidades e que pernoitam em acampamentos improvisados sob marquises e viadutos. Elas comprovam que a pobreza extrema — invisível ou com nome, voz e endereço — é uma triste realidade e o mais urgente desafio para o país.