Por Luiz Antonio Nasi, superintendente Médico do Hospital Moinhos de Vento
luiz.nasi@hmv.org.br
Depois de um ano e alguns meses trabalhando diariamente no Hospital Moinhos de Vento, e mesmo vacinado com as duas doses, após um round diário sobre os pacientes internados fui alertado pela residente que estava com uma tosse estranha. Em seguida, senti um leve "arrepio de frio" a caminho da Emergência para fazer o PCR. Horas depois, o resultado positivo: a covid havia me pegado!
Como isso pôde acontecer, mesmo vacinado e tendo passado ileso pelo auge da pandemia, em março de 2021, quando montamos uma estrutura de guerra para atender a maior e mais letal crise sanitária da nossa história recente? Abrimos dez leitos de UTI por semana, triplicamos a nossa capacidade de atendimento de doentes críticos e chegamos a ter 280 internados com covid-19.
A marca dessa doença é a sua imprevisibilidade e o profundo mal estar que caracteriza a virada entre a primeira e a segunda semana - que tanto ouvi os pacientes repetirem. O sono é intercalado com despertares pesados. Uma sensação ininterrupta de querer algo que faça a diferença.
Em casa, recolhido, considerava todas as hipóteses naqueles dias mais impactados pela doença. Foi quando lembrei do quadro pintado por Francisco de Goya em 1799, que mostra um homem dormindo rodeado de abutres e com a frase: "El sueño de la razón produce monstruos". Essa era a sensação do meu sono, ou do meu despertar, buscar algum sentido para aquilo tudo.
A marca dessa doença é a sua imprevisibilidade e o profundo mal estar que caracteriza a virada entre a primeira e a segunda semana
Então, algo surpreendente aconteceu: mensagens de amigos, pacientes e pessoas com quem há muito eu não falava. Mensagens que contribuíram para minha retomada e considerei o meu kit de sobrevivência. Doces, cestas, bombons e até sopas aromatizadas francesas para a minha recuperação, quando já computava uma perda de 4kg a 5kg em duas semanas. Eu nunca tinha experimentado tanta solidariedade - nem imaginava a importância disso para um enfermo. Minha companheira Sheila validou minha capacidade de vencer a covid e conseguiu me transformar no mais obediente dos homens. Ao longo dessa pandemia pude constatar que as Sheilas se multiplicam em mulheres, mães e filhas que dominam a arte de nos cuidar e nos fazer reconhecer a limitação da nossa biologia.
Esse breve relato é uma forma de agradecer o afeto - e de reconhecer que, embora a probabilidade de sobrevivermos venha do conhecimento médico, com certeza isso não basta. Que a lucidez e o sono da razão pós-pandemia faça acordar um Brasil mais austero, mais solidário e com mais esperança.