Transcorridos mais de três meses desde a chegada da pandemia ao Brasil, o país ainda não construiu métricas capazes de identificar o real alcance do novo coronavírus na população e, principalmente, se a sua trajetória é de crescimento, certa estabilidade ou início de recuo. Mesmo que não exista má-fé de quem trabalha com os dados e faz diferentes interpretações, o fato é que não há hoje confiança de que os números expressem a situação real, a começar pelos indícios de grande subnotificação. Apesar de o Rio Grande do Sul ocupar a liderança do ranking da Open Knowledge Brasil sobre transparência na divulgação de informações sobre a covid-19, a divergência de dados entre as prefeituras e o governo estadual, mostrada na semana passada por Zero Hora, é outro exemplo de situação que acaba gerando dúvidas na sociedade.
A situação fica ainda mais nebulosa no país, gerando incerteza na população e nos gestores, um quadro agravado pela crescente politização em torno das estatísticas. Talvez em nenhuma parte do mundo ocorra hoje um fenômeno em proporções semelhantes, em que os números são torcidos, ressaltados ou minimizados de acordo com a ideologia de quem os apresenta e interpreta. Torturam-se números para demonstrar que o Brasil vive uma situação mais ou menos desconfortável. É o caso, por exemplo, da comparação entre países. Os seguidores do presidente Jair Bolsonaro preferem mencionar a relação de mortes por habitante, cotejando com nações europeias com menor população e taxas mais altas de óbitos, como Reino Unido e Bélgica. Mas esquecem de levar em conta os estágios diferentes da pandemia e também desprezam todos os indícios de grande subnotificação em território nacional. O Brasil, sabe-se, é um dos países que menos testa no mundo.
Não se pode admitir a tentativa inescrupulosa de maquiar números ou recorrer a contabilidades criativas para mascarar a realidade
No sentido inverso, passa-se por cima de comparações com outros países de perfil mais parecido com o Brasil, como Filipinas, Índia e África do Sul, onde a covid-19 se mostra menos letal até agora, mas que também vivem estágios distintos em relação à maturação da pandemia. Ignora-se ainda diferentes práticas, como a baixa taxa de atestados com a causa mortis em algumas nações, principalmente na Índia, mas também o insuficiente número de pessoas testadas, o que dificulta um balizamento. Quanto mais exames são feitos, os números de contaminação ficam maiores, mas a letalidade cai.
O fato é que é preciso ter cuidado com as comparações devido aos momentos diferentes da pandemia e assimetrias dos sistemas de saúde quanto à capacidade de oferecer um quadro mais preciso da doença. , como tentou o Ministério da Saúde do Brasil, adotando uma fórmula exótica em que deixavam de ser contabilizadas mortes ocorridas em dias anteriores, mas confirmadas ou registradas posteriormente. A verdade, de uma forma ou outra, viria à tona.
O vírus não respeita fronteiras ou visões de mundo de governantes, mas tira proveito de lideranças caóticas e da desinformação, proposital ou involuntária, para driblar controles e continuar a se expandir. Os exemplos de Nova Zelândia e Vietnã, países governados por ideologias diferentes, mas que bem conseguiram controlar a disseminação do patógeno na população, são casos que merecem estudos e referencias mais embasadas e profundas. Cada um a seu modo, mas com disciplina e responsabilidade, dois elementos escassos no Brasil, lograram êxito na tarefa de vencer a pandemia que assombra o mundo.