A necessária utilização de recursos extraordinários para amparar os mais necessitados devido aos reflexos da pandemia do novo coronavírus e mesmo o apoio justificável a Estados e municípios em um período de queda na arrecadação não podem ser compreendidos como uma espécie de senha para rasgar definitivamente o esforço fiscal dos últimos anos. Pois exatamente essa percepção de irresponsabilidade é que foi passada pelo Congresso na noite de quarta-feira, quando, incrivelmente com o apoio do Planalto, alterou o texto sobre o socorro financeiro a governos estaduais e municipais e reduziu drasticamente a contrapartida pedida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, de congelar por 18 meses qualquer aumento salarial para todas as esferas do funcionalismo. A orientação para aumentar as benesses veio do próprio presidente Jair Bolsonaro, disse o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-SP).
Menos mal que, ontem, com rara mas elogiável prudência, Bolsonaro disse que vai vetar o trecho que permite os benefícios desmedidos
Entre as categorias mais beneficiadas, por estranha coincidência, estão as ligadas à segurança, área em relação à qual o presidente Jair Bolsonaro costuma ter especial deferência, muitas vezes até agindo como uma espécie de líder sindical, como foi observado nas negociações envolvendo a reforma da Previdência. Menos mal que, ontem, com rara mas elogiável prudência, Bolsonaro recuou e disse que vai seguir a sugestão de Guedes e vetar o trecho que permite os benefícios desmedidos.
Mas não deixa de ser preocupante a nova recaída populista de parlamentares, com o apoio – depois arrependido – do governo, que votaram um pacote recheado com a imprudência ao prometer a transferência de recursos a Estados e municípios sem praticamente exigir contrapartidas e sacrifícios. Torna-se mais grave pela constatação de que ficaria aberta a porteira para aumentos a segmentos já privilegiados, enquanto grande parte dos brasileiros enfrenta queda da renda, redução de salários e medo do desemprego.
Seja federal, estadual ou municipal, o dinheiro público vem da mesma fonte: o suado imposto pago por contribuintes, pessoas físicas e jurídicas, que exatamente neste momento atravessam um período de gigantescas incertezas pela quase paralisação da economia. E são esses mesmos que teriam de pagar mais essa conta, tanto pela via da tributação quanto pela penalização com a piora ou redução dos serviços públicos.
Espera-se que o presidente Bolsonaro, irresponsável na crise sanitária, confirme o veto e o Congresso não trame para desautorizar o Executivo neste caso. Mais esse triste episódio arquitetado nos bastidores do poder mostra que existem várias razões para o mundo olhar desconfiado para o Brasil. Não por acaso, a agência de classificação de risco Fitch rebaixou, no início da semana, a perspectiva de nota de crédito do país. É só mais uma notícia ruim, entre as várias que surgem todo dia, a semear pessimismo para a recuperação da economia brasileira, quando as preocupações na área da saúde começarem a refluir e for a hora de arregaçar as mangas para recolocar o país no caminho da recuperação. No Brasil, estes são tempos em que nada parece ser tão ruim que, pelos despropósitos de seus líderes, não possa piorar.