Por Manoel Soares, comunicador
Existe uma relação aspiracional que ainda mora no coração das pessoas pobres. Por conta disto, querem agir, pensar e existir como ricos. Compram carros que não têm nem como custear gasolina ou seguro, ou celulares que sustentariam a família por um semestre. Quem vive neste contexto tem sede de existir em outro lugar social e assiste à parte das classes média e alta desdenhar do vírus. Nesta hora, esse comportamento define um padrão de relação com a pandemia a partir da aspiração de ser e agir como rico.
Por mais que a maioria das pessoas das classes alta e média esteja se cuidando, os poucos que vão para a rua fazer protestos e criticar o isolamento fazem barulho suficiente para que as pessoas das periferias que desejam que esse vírus seja algo leve e não letal se convençam de que está tranquilo. Mas a verdade é que esses que se expõem fora da favela chegam em casa e tem álcool gel para se higienizar e, caso adoeçam, têm plano de saúde e toda uma estrutura que os ampara.
Por ingenuidade apimentada por uma teimosia letal, os incrédulos da periferia entendem que, se seus patrões fazem carreatas e postam textos dizendo que é gripezinha, eles, na lógica de espelhamento, podem ir para a rua com seus bailes funk, sambas de roda e churrascos em família. São galinhas que se seduzem com o voo da águia e pulam do penhasco.
Alguns otimistas da conscientização acreditavam que a ideia da morte seria suficiente para ligar o alerta dessas pessoas. Mas não foi, porque a periferia é o playground da morte. É comum nos becos não mapeados as pessoas encontrarem idosos mortos em casa, isso depois de vê-los por dias agonizando nas filas dos postos de saúde. É comum ver jovens de cabeça estourada na rua, ver meninas de 14 anos morrerem em partos arriscados, ver bebês morrerem, sendo sufocados ao dormirem com pai e mãe na cama, por falta de berço.
A relação da periferia com a morte é habitual. Esse discurso de que a vida está em risco não surte efeito, porque a vida na periferia é um risco permanente. Com postura de São Tomé, somente quando a morte bate à porta, no caso do coronavírus, essa conscientização é tardia. Favelados, às vezes, só têm a liberdade, e a covid-19 lhes tirou isso. Mas, se a ideia da morte dentro da periferia é banalizada, fora dela os mortos do asfalto têm nome e família. Na periferia, são números de estatísticas-favela.