Beira o surrealismo a discussão sobre o grau de proximidade de membros do clã Bolsonaro com integrantes da chamada milícia no Rio de Janeiro. São notórias as evidências de que o ex-capitão do Bope e chefe miliciano Adriano Nóbrega, morto em operação policial no sítio de um vereador do PSL no interior da Bahia, comandava o chamado Escritório do Crime, com atividades ilegais que vão da exploração do jogo do bicho a homicídios. Também não é contestado o fato de o senador Flávio Bolsonaro ter empregado em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, até novembro de 2018, a mãe e a mulher do miliciano foragido. Potencialmente explosiva, a combinação é, na melhor das hipóteses, motivo robusto o suficiente para uma sucessão de embaraços familiares que respingam na vida política nacional.
O país merece saber a quem interessava a morte de um líder miliciano com conexões no submundo da sociedade fluminense
A manifestação deste fim de semana do presidente da República sobre a morte do líder miliciano, homenageado com um discurso em 2005 pelo então deputado Jair Bolsonaro, não ajudou a afastar o travo de que há mais coisas entre o céu e a terra na política do Rio do que seria de se esperar. Ressalve-se que o discurso na Câmara 15 anos atrás não significou mais do que um ato na corriqueira sucessão de elogios do então deputado Bolsonaro a policiais que enfrentavam e matavam criminosos. Mas a nota deste domingo em que o presidente questiona a ação policial, registra que Adriano não tinha condenação em última instância e ataca a "provável execução sumária" do chefe miliciano é um surpreendente gesto de protesto contra uma suposta violência policial por parte de quem, como seus filhos, costuma defender o uso da força bruta contra bandidos.
O episódio da morte do miliciano encerra uma série de dúvidas que autoridades isentas precisam esclarecer, a fim de sanear as bandas podres das polícias e da política. O questionamento mais óbvio é sobre a adequação da conduta da força policial no cerco ao ex-capitão, para afastar ou confirmar a suspeita de queima de arquivo. Mas o país merece saber também a quem interessava a morte de um líder miliciano com conexões no submundo da sociedade fluminense.
Além disso, até o momento o senador Flávio Bolsonaro não explicou por que mantinha em seu gabinete, com salários de R$ 6.490,35 cada, a mãe do ex-PM, Raimunda Veras Magalhães, e a mulher dele, Danielle Mendonça da Costa da Nóbrega. As duas deixaram o gabinete no mesmo dia, logo depois da eleição de Bolsonaro à Presidência. Raimunda também é citada em um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) por ter repassado pelo menos R$ 4,6 mil para a conta do ex-assessor Fabrício Queiroz, em outra conexão anda inexplicada.
Os segredos momentaneamente suprimidos com a morte do ex-capitão Adriano não podem desaparecer com ele. O país, a começar pela família do presidente, deve não só demonstrar repulsa absoluta à abjeta atividade das milícias, que mantêm comunidades inteiras reféns de suas extorsões. É preciso também que a surpreendente indignação do clã presidencial pela morte de um bandido se converta em apoio e cobrança das investigações sobre o grau de contágio da política por uma atividade criminosa e inaceitável como as milícias.