Uma das nada imprevisíveis consequências do mantra de Donald Trump – "America first" – materializou-se em sua decisão de retirar o Brasil e outros 18 países da lista de nações que poderiam receber tratamento preferencial para não serem afetadas por barreiras comerciais. Com a exclusão, o presidente dos EUA pretende atingir a China, com a qual rivaliza pela futura liderança econômica mundial, mas na prática acerta, além do Brasil, países em desenvolvimento como Índia, África do Sul e Argentina. Ao revogar o tratamento preferencial, os EUA abrem a possibilidade de estabelecerem barreiras a exportações brasileiras que contavam com um status que garantia certa proteção contra novas tarifas.
Em breve, o governo brasileiro terá sua hora da verdade em matéria de relacionamento com o governo Trump
Mesmo que as exportações brasileiras não venham a ser prejudicadas, a decisão é um alerta sobre a pretensa aliança indissolúvel entre os governos Bolsonaro e Trump. Seguindo seu mantra, o presidente dos EUA pensa e age primeiro de acordo com seus interesses, desprezando muitas vezes relações multilaterais e globais. O atual governo brasileiro, adepto da doutrina de esfriar acordos internacionais, como o de Paris, só não vai mais à frente porque a fragilidade econômica brasileira não pode dispensar uma relação amistosa com todos os organismos e países, incluindo aqueles com quem os EUA travam disputas profundas, a exemplo de China e governos do Oriente Médio.
Amparado por Bolsonaro, o chanceler do Brasil, Ernesto Araujo, bem que tentou uma guinada no tradicional pragmatismo do Itamaraty. As movimentações iniciais da diplomacia antiglobalista resultaram em acidentes de percurso com China, países árabes, França e Argentina. Felizmente, antes de um desastre consumado para a economia brasileira, o bom senso prevaleceu e, aqui e ali, foram se reatando os laços, independentemente de simpatias ideológicas, como, aliás, sempre foi corrente nas relações externas do Brasil desde o Império. Ressalve-se que foi o presidente Ernesto Geisel, prócer do regime militar brasileiro, que, antevendo o gigantesco mercado deixado à deriva, contrariou os EUA e reconheceu o governo da China continental quando ainda era uma ditadura comunista, e não uma ditadura híbrida como hoje.
Em breve, o governo brasileiro terá sua hora da verdade em matéria de relacionamento com o governo Trump. A batalha se desenrola em torno da participação da gigante chinesa fornecedora de equipamentos 5G Huawei no leilão que definirá a instalação de equipamentos para a mais revolucionária tecnologia desde o surgimento da internet. Os EUA se empenham mundo afora em um poderoso lobby para que a chinesa seja excluída das disputas em andamento – o último lance ocorreu no Reino Unido, onde, para ira de Trump, o governo de Boris Johnson aceitou a entrada da empresa, vetando-a apenas em áreas de alta segurança, como a de defesa.
No Brasil, a chinesa já fornece cerca de um terço dos equipamentos de telefonia móvel. A disputa bilionária, adiada para 2021 no país, não deveria, em hipótese alguma, ser misturada por Jair Bolsonaro com simpatias e amizades transitórias. Como ensina Trump, o Palácio do Planalto deve pensar primeiro nos interesses brasileiros – e esses indicam que, antes de se definir quem será o vencedor do 5G, é preciso extrair ao máximo vantagens nas condições de negociação para beneficiar, antes de mais nada, os consumidores brasileiros.