Por Fábio Bernardi, sócio-diretor de criação da Morya
Um país não se define pela moeda. Vários usam o mesmo Euro. Um país não se define pelo território. Italiano é italiano em qualquer lugar, desde que tenha o sangue. Um país não é sua indústria, nem seu sistema de saúde, tampouco o seu governo. Pergunte aos que são ilha e não produzem quase nada, aos EUA, que não tem sistema público de saúde, ou a qualquer exilado fora de sua pátria.
Um país é seu povo e seu legado cultural. Aquela gente que convive e que alimenta a alma do que ela própria produz de arte, folclore, tradição e pensamento através dos anos – e que permanecerão enriquecendo, formando e formatando suas gerações futuras.
Um país é feito de Joões Gilbertos. Gente que cria caminhos, que desbrava estradas para os outros que virão depois. João era um exemplo que o Brasil nunca seguiu. Alguém que sabia que não importava a altura da voz, desde que ela cantasse o que devia cantar. Alguém que não aceitava a complacência verde e amarela com que lidamos com qualquer coisa, de conversas no teatro a ruídos da política. Alguém obcecado por conceito e qualidade de um jeito que nunca sequer passamos perto.
O mundo descobriu o Brasil quando descobriu João Gilberto. E o mundo continuará descobrindo João Gilberto por toda a eternidade. Um símbolo de um tempo em que o futebol, a arquitetura, a música, o cinema, a literatura e o próprio Brasil eram cosmopolitas, um país que emanava beleza, poesia, cultura, simples sofisticação e até mesmo uma visão própria do mundo. Um Brasil que respeitava sua miscigenação e dela fazia um caldeirão cultural rico e repleto de potência artística, ambição e inveja. O disco Getz/Gilberto é até hoje o álbum de jazz mais vendido da história, e nem é de jazz e nem cantado em inglês – veja só aonde o talento brasileiro pode nos levar. João inventou a bossa nova e ela ganhou o mundo sem contar com TV e contra a vontade das poderosas emissoras de rádio da época. Mas todos, inclusive a imprensa, a moda e a publicidade, tiveram que se render ao estilo de música que virou modo de vida e comportamento.
João era daquele tipo de elegância que jamais faria um gesto de arma com a mão. Talvez por isso o presidente do seu país, ao saber de sua morte, disse apenas: "Era uma pessoa conhecida, meus sentimentos pra família, tá ok?". Foi tudo o que o enorme João mereceu do pequeno Jair.
O Brasil de João Gilberto era limpo, sem excessos e com sobras de poesia. Nada mais antagônico ao país de hoje. Vai minha tristeza e diz a ele que sem ele não pode ser. Brasil, não quero mais esse negócio de você viver assim.