Deivison Moacir Cezar de Campos, jornalista, doutor em Comunicação e doutorando em História
O número de africanos sacrificados no processo escravista é impreciso. A falta de reconhecimento dessa desumanização de seres humanos em nome da acumulação primitiva de Capital e a negação das manifestações culturais que restaram desse processo garantem a permanência do racismo estrutural nas relações sociais. O ataque à sacralização de animais é uma das formas como o racismo se manifesta socialmente.
A sacralização dos animais nas religiões de matriz africana segue conhecimentos milenares guardados na tradição e compartilhados pela experiência e pela oralidade. Esses conhecimentos garantem que não haja sofrimento para que a boa energia vital resultante, o axé, religue os iniciados aos ancestrais e à natureza. Ao mesmo tempo, possibilita a renovação das energias da coletividade de um terreiro, pelo axé e pelo alimento compartilhado entre os que vivem em torno das casas de religião. São cosmogonias e tempos que não podem ser medidos pela visão de mundo europeia.
Apesar disso, a argumentação contrária a prática segue um regime de verdade construído pela modernidade do Ocidental, a mesma que gerou as teorias do racismo científico – base da ideia de superioridade da civilização e das raças europeias. Os argumentos parecem novos (veganismo e defesa dos animais), se repetem (ilegalidade), ou permanecem (barbárie e diabolização), mas em verdade se originam na mesma matriz — o racismo estrutural.
Referir a simples manifestação contrária, ou favorável à sacralização não dá conta da complexidade do debate. O ataque jurídico e público a esse rito, basilar das religiões de matriz africana, objetiva em verdade o desaparecimento dessa forma de existir. São manifestações de intolerância religiosa que negam a diferença e se impõem a partir de uma visão de mundo que sacrifica e elimina física e simbolicamente desde sempre africanos escravizados e seus descendentes.
A decisão do Supremo, que garante o direito de existir com a natureza das religiões de matriz africana, apenas reafirma o que está exposto no artigo 5º da Constituição Federal. O resto é racismo.