É certo que um juiz ladrão incomoda muita gente. Mas é provável que um juiz ladrão, munido com sistema de videoarbitragem (AV), incomode muito mais. O problema não está no uso da tecnologia, que sempre gerou bons resultados em esportes como o rugby, o futebol americano e até o basquete, entre outros. Na verdade, está na maneira como ela começou a ser utilizada no nosso futebol.
Para começar, o AV não interfere em todas as situações de jogo. Embora as câmeras observem cada movimento sobre o gramado, o International Football Association Board (Ifab) permite que somente quatro tipos de jogadas sejam escrutinadas nos monitores: gols, pênaltis, cartões vermelhos e também a correta identificação de jogadores punidos em campo. Daí que sua utilização é restrita. O própria Ifab realizou um estudo em 804 partidas equipadas com AV. Constatou que os árbitros utilizam o sistema em menos de um terço delas.
Nosso interesse é o espetáculo do futebol, e não de sua arbitragem
ANDREAS MÜLLER
Jornalista
Na prática, o juiz ladrão continua a salvo e bem protegido. Pois o AV não coíbe a ação de quem, por incompetência ou má-fé, trava o jogo com o apito em lances triviais. Não corrige o árbitro que aponta faltas em qualquer trombada no meio de campo. Não age sobre escanteios que deveriam ser tiros de meta e nem sobre cartões amarelo dados de forma intempestiva até a expulsão. Em suma, o sistema ignora todos aqueles erros mundanos que tornam uma partida insossa ou irritante, mas que fazem um time crescer para cima do outro.
Nos esportes em que a tecnologia vem sendo utilizada há mais tempo, os técnicos e até os atletas têm o direito de “desafiar” as decisões do árbitro com a revisão em vídeo. No futebol, porém, o Ifab vetou essa possibilidade com um argumento esdrúxulo: o de que o AV já rastreia todos os movimentos do campo – logo, por que os técnicos e atletas precisariam se preocupar com isso?
O argumento faria sentido se o sistema servisse para fiscalizar o juiz. Mas não é o que acontece. No futebol, o juiz tem liberdade para ignorar os alarmes do AV. Resultado: enquanto alguns fazem de conta que o sistema não existe, outros recorrem demais ao monitor. Na ausência de critérios claros, a tecnologia não garante que as jogadas erradas serão corrigidas. E o juiz, em vez de ser fiscalizado, é empoderado.
Importante lembrar que a arbitragem do futebol não é de todo ruim. Na média, os árbitros já acertam 93% das vezes em que apitam lances cabais – e o AV promete elevar esse índice para inacreditáveis 98,9%. O que estraga a coisa toda é o despotismo do juiz, que tem cada vez mais condições de ditar sozinho o ritmo do jogo. E isso o AV não resolve.
Na média, segundo o Ifab, nós perdemos 28 minutos e meio por partida com a bola parada em tiros de meta, cobranças de laterais, substituições e outros lances descartáveis. Agora, perderemos um minutinho a mais com o juiz exercendo sua majestade diante de um tablet. Mais uma vez, quem paga o pato somos nós, torcedores, com essa estranha mania de ir ao estádio para ver o espetáculo do futebol, e não de sua arbitragem.