Parafraseando Luisa Marilac, "nesse verão decidi fazer algo de diferente". Tenho estado bem sozinha em uma praia gaúcha. Sim, as praias daqui são muito, muito feias. Muito feias mesmo. Não pela natureza, mas pela intervenção do homem. Se fôssemos uruguaios, nossa orla seria um charme.
Coloquei os pés de tomate que já não cabiam no apê de Porto no porta-malas, catei o dildo, o livro da Beatriz Preciado, e toquei para o Litoral. Minha amiga não abre a casa de praia há meses, e eu me ofereci para dar uma cuidada na pequena propriedade de frente ao mar nesse lugar que, antes reduto de velhos, brancos e gordinhos oriundos da Serra, agora parece ter sido invadido pelos netos, adolescentes sarados, movidos a bala, carros rebaixados e muito funk putaria, esse tipo de música que o litoral gaúcho adora. O tempo todo, "meu pau te ama" ecoa de algum carro ligado a milhão. Percebo que, nesses funks, o machismo destaca duas palavras: "pau" e "novinha". Olho para o dildo e prefiro ficar com ele.
Se não poderia haver ano pior que 16, o 17 já começa mostrando que sim. Em Caxias, terra do gringo que faz e dos muitos carros de som que poluem essa praia, uma mana conta ter sido estuprada por sete homens e depois desmente o depoimento dado pelo filho à polícia, afirmando ter transado por vontade própria. Na Câmara de Porto Alegre, Fernanda Melchionna bate boca com um senhor de gravata amarela e dedo em riste.
O atentado machista em Campinas me faz querer ficar cada vez mais sozinha. Tenho medo dos homens de bem, não porque eles matam sem querer usando WhatsApp no trânsito, mas por matarem as "vadias" que não aceitam ser submissas.
Claro que a família estranhou o meu desejo de ficar só. A função da família é estranhar. Logo depois da meia-noite, um ex me manda mensagem desejando paz em 17. O cara até que tinha pegada, mas quando capitaneou manifestações pró-golpe chamando Dilma de "vadia", eu simplesmente não consegui mais. Lhe respondo desejando autocrítica, mas não envio a mensagem. Penso na autocrítica que a esquerda vem sendo obrigada a fazer publicamente, e me pergunto o que significa ser esquerda, hoje.
Me pergunto se eu mesma sou esquerda hoje.
Lembro de uma tarde em Berlim com Nina Lemos, ambas turistas longe de casa. Lembro de, entre cafés, ter lhe dito que se eu fosse uma mulher cisgênera, no Brasil, me mataria ou iria embora. O que para mim era normal, para Nina foi forte demais. Ela é cisgênera. Hoje, seis anos depois, Nina habita Berlim e eu a entendo. Eu, morando aqui, tenho medo. Vivo no país que mais mata mulheres transgêneras no mundo. Mas também não quero morar em Berlim. Olho para as minhas unhas e elas estão sujas de terra. Os tomates se adaptaram bem ao solo arenoso. Abro uma garrafa de cerveja para fechar o computador.
Do outro lado da Beira-mar recém asfaltada, sobre um carro estacionado quase na areia, a menina dança. Não tem nem 13 anos. No som, MC Don Juan grita, martelando o verão gaúcho e o corpo da novinha com "pau", "peru" e "xereca". Penso em Foucault falando sobre a erotização infantil, e torço por uma tempestade. Ou por onda forte. Torço forte pelas vadias de amanhã e as vadias de agora. Pelas Isamaras, Lilianes, Alessandras, Antonias, Abadias, Anas Luizas, Larissas, Luzias e Carolinas espalhadas pelo mundo, mortas pelo machismo bem dentro de nossas casas.
* Ismael Caneppele escreve mensalmente para o Caderno DOC.