Tive a sorte de não passar na André Puente no último dia 3 pela manhã. Mas mesmo assim, o corpo que eu não vi chegou a mim. Mesmo assim posso descrevê-lo porque o conheço muito bem.
Era o corpo de um adolescente que talvez um dia eu possa ter tirado do ventre da sua mãe. Agora, este corpo estava franzino porque trazia as marcas do descaso. Estava exposto, inerte, indefeso, porque representava a paralisia, a indiferença. Estava seminu e descalço porque resultante da falta de compaixão. Estava ferido pelo ambiente que o recebeu.
Criamos gerações de excluídos, nascidos sem planejamento, criados sem educação, sem afeto. Que vergonha que eu sinto diante deste corpo porque ele resulta de nossos atos. Investimentos em planejamento familiar têm sido historicamente negligenciados por justificativas hipócritas. Os métodos contraceptivos mais eficazes e que trazem benefícios adicionais à vida da mulher são disponibilizados somente para quem pode pagar. Que vergonha que eu sinto por viver numa sociedade onde a natalidade da população pobre é estimulada, sem que se assegure mínimas condições de uma vida digna a estas crianças. Que tristeza assistir à contínua reprodução de mulheres que há muito já perderam a capacidade de cuidar de si, seja por drogadição, detenção ou pobreza extrema, em nome dos direitos humanos.
Nossa indiferença diante de um aspecto tão primário de organização da sociedade criou gerações de desassistidos, que se tornaram numerosos e agora batem à nossa porta. Eles mostram seu rosto cobrando sua parte na sociedade. Estamos assustados, mas não podemos esquecer que somente os capazes, os afortunados, os instruídos podem cuidar de quem é incapaz. Enquanto nos preocupamos com divergências políticas, nossa população de abandonados só aumenta e nossas crianças se entregam ao crime. Precisamos de políticas públicas eficazes e o planejamento familiar igualitário, acessível a todas as mulheres é uma delas.
Fazemos planejamento familiar dentro de nossas casas, temos os filhos que podemos cuidar. E valorizamos os filhos que temos. Por que nosso Estado não pode fazer o mesmo?