A canção que fazia sucesso no rádio e na TV colocou no meio da sala da família brasileira os mortos da ditadura militar: "Choram Marias e Clarices no solo do Brasil". Era o final dos anos 70, e alguém tratou de me explicar quem eram Clarice Herzog e Maria Aparecida Fiel Pivotto e por que elas choravam - e até hoje associo o fim da minha infância a esse Big Bang histórico e poético provocado por O Bêbado e a Equilibrista.
Além de ensinar história recente para crianças e comover adultos que sonhavam com a volta do irmão do Henfil, a canção de Aldir Blanc e João Bosco era um hino - e, como todos os hinos, tornava sua causa simbolicamente mais forte. Um hino, aliás, que só foi possível porque circunstâncias artísticas e mercadológicas da época permitiam que houvesse público vasto e diverso para letras e harmonias sofisticadas - e o tipo de canção que jamais sairia da fábrica de hits padronizados que abastece boa parte do mercado musical nos dias de hoje.
Neste domingo, completam-se 40 anos da morte de Vladimir Herzog, o jornalista que se tornou símbolo do momento em que o demasiado tornou-se excessivo, e a sociedade civil brasileira decidiu reagir - OAB, líderes da oposição, líderes religiosos, artistas, estudantes. Entre outras coisas, essa mobilização prova que, mesmo no Brasil, é possível a união de adversários em torno de um objetivo comum. As diferenças, inevitáveis, poderiam ser debatidas mais adiante, quando o mínimo de respeito às instituições fosse restaurado. É impossível comparar o Brasil da ditadura com o Brasil da democracia, por mais imperfeita que ela seja, mas se o passado nos ensina alguma lição é a de que mesmo ali, onde não havia liberdade e todas as associações eram suspeitas, foi possível reagir e superar rivalidades.
Quem era criança naquela época, ou nem sequer tinha nascido, não pode esquecer que tem uma dívida histórica com a geração que restaurou a democracia - por mais que discordemos das escolhas que alguns tenham feito depois. Uma dívida de ação e mobilização. Sonho com o dia em que a sociedade brasileira sinta-se tão ultrajada com a violência da polícia, que cerre fileiras contra ela. Sonho com uma grande mobilização nacional contra leis desumanas e atrasadas como o projeto aprovado na Câmara nesta semana que penaliza ainda mais as vítimas de estupro. Sonho que Vladimir Herzog e todos os que lutaram pela redemocratização e por um Congresso livre não sejam desonrados com a vitória da razão cínica na política. Sonho que as igrejas que abrigam políticos corruptos escolham honrar os líderes religiosos que ficaram ao lado da Justiça e da lei no passado repudiando a teocracia mercenária e retrógrada instalada em seu nome no Congresso.
Talvez nos falte o hino, talvez nos faltem os líderes, mas definitivamente não nos faltam as causas - e não pode nos faltar o ânimo. A esperança é a equilibrista.
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