Por Pedro Doria, jornalista, cofundador do Canal Meio e membro do Conselho Editorial da RBS
O relatório final da Polícia Federal, quase 900 páginas sobre o planejamento e o início da execução de um golpe de Estado em 2022, é arroz com farofa. Leitura difícil. Não é escrito como reportagem, como texto jornalístico, daqueles em que o fundamental aparece logo de cara e tudo é explicado nos pormenores. Tampouco é como thriller, em que o mistério vai se desvendando lentamente, no ritmo da ação, a cada virada de página.
Nós, a geração de jornalistas treinados nos anos 1980, 90 e adiante, nunca achamos que teríamos de cobrir uma tentativa de golpe militar
Nada disso: é um documento chato, todo em legalês, repetitivo, com depoimentos escritos no jargão dos boletins de ocorrência policial, provas ajuntadas, fragmentos de conversas por WhatsApp, documentos anexados, áudios transcritos. Há alguma ordem, alguma estrutura, mas nada é realmente feito para facilitar o leitor comum. Juízes estão acostumados com maçarocas assim. Nós, não.
E, ainda assim, o inquérito é fascinante. Nós, a geração de jornalistas treinados nos anos 1980, 90 e adiante, nunca achamos que teríamos de cobrir uma tentativa de golpe militar. Parecia coisa que havia ficado na história. E, no entanto, cá estamos. Achamos ainda menos que viveríamos num país tão agressivamente dividido como o de hoje. Estamos há quase 10 anos nesta divisão que racha famílias, separa amigos de anos, torna conversas quase impossíveis. Porém aqui estamos.
Isto quer dizer que temos trabalho. Talvez o trabalho mais importante de nossas carreiras: é o trabalho de contar essa história. Contar com detalhes, mostrar as provas que há, contar sem paixão e com precisão. Contar, mostrar, deixar claro. Num ambiente de desinformação, temos coletivamente que fazer nosso trabalho muito bem-feito. É nossa a missão de apresentar ao Brasil o que a Polícia Federal descobriu. Fazer isso sem exageros, sem paixões partidárias. Tornar evidente.
Nunca contar uma história direito foi tão importante. Informação, quando as pessoas se abrem para a informação, tem o poder de construir uma realidade comum. Quando compartilhamos uma mesma realidade, conseguimos novamente dar estrutura a comunidade. Conseguimos nos reconectar.
Mas como fazer com que mais e mais gente se abra à informação? Contando bem uma história. É nosso trabalho. E é hora de ele começar.