Nunca uma gestão brasileira à frente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) foi marcada por tamanho impasse geopolítico como a que se encerrou na terça-feira (31). O Brasil estava em seu sétimo dia nessa função quando o mundo assistiu a cenas de assassinatos de civis protagonizadas por militantes da organização extremista muçulmana Hamas, seguidas de bombardeios israelenses em retaliação. Desde então, a diplomacia brasileira tem tentado um cessar-fogo. Sem sucesso.
O Conselho de Segurança da ONU é o responsável por zelar pela paz internacional. Ele tem 15 membros, sendo 10 rotativos e cinco com assento permanente — Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido. Os membros fixos têm poder de veto sobre resoluções do órgão.
A presidência é definida de forma rotativa, com mandatos de um mês. O Brasil assumiu o conselho em 1º de outubro. A China estará no comando em novembro, e o Equador em dezembro.
A agenda brasileira na liderança do conselho foi dominada pelo conflito no Oriente Médio, iniciado em 7 de outubro. Desde o início da guerra, o Conselho de Segurança já rejeitou uma resolução brasileira, uma norte-americana, duas propostas russas e mais uma brasileira, na segunda-feira (30).
O próprio chanceler brasileiro, Mauro Vieira, afirmou que a ONU vem "falhando vergonhosamente" em colocar um fim à guerra e ao sofrimento humano no território da Faixa de Gaza. Disse que o órgão "tem os meios para fazer algo", mas "repetida e vergonhosamente" falha.
GZH ouviu cinco especialistas em geopolítica para analisar os 31 dias de gestão brasileira no conselho da ONU. São eles os professores Roberto Uebel (que leciona Relações Internacionais na ESPM e Geografia na UFRGS), Leonardo Trevisan (Relações Internacionais na ESPM), André Reis (Relações Internacionais na UFRGS), Eduardo Svartman (Relações Internacionais na UFRGS) e Iair Grinspun (História em cursos pré-vestibulares, Enem e colégios da rede pública estadual).
Os motivos do impasse no Oriente Médio
Os especialistas consultados são unânimes em ressaltar que a culpa maior no fracasso em conseguir um cessar-fogo não é do Brasil, mas do modelo do Conselho de Segurança da ONU. Como os cinco países com poder de veto não se entendem, de pouco adianta a iniciativa brasileira.
Os EUA, por exemplo, exigiram texto com condenações mais incisivas ao Hamas, que mencione o direito de autodefesa de Israel. Já a Rússia defendeu um cessar-fogo imediato e que Israel suspenda a ordem de retirada de palestinos do norte de Gaza. Um vetou ao outro, sucessivas vezes, mantendo o impasse.
Já a proposta que o Brasil fez, de um "corredor humanitário" para saída de palestinos de Gaza, foi aprovada por 12 de 15 votos, mas o veto dos EUA foi decisivo. O próprio presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, só vê uma saída.
— Queremos acabar com o direito de veto. Nós achamos que os americanos, os russos, os ingleses, os chineses, ninguém tem o direito de veto. É preciso acabar. Ou seja, se tiver dúvida, vota-se, a maioria ganha e cumpre-se — falou, em entrevista no fim de semana.
Leonardo Trevisan lembra que essa estrutura de vetos vem desde o fim da Segunda Guerra Mundial:
— Não é possível julgar eficiência do Brasil, que exerce função protocolar quando preside o conselho. É um país pacífico e a posição brasileira voltou ao seu leito tradicional, com equidistância em relação à autodeterminação dos povos e respeito às fronteiras. Condenou os dois lados, o que é bastante relevante. Fortalece nosso país como negociador.
O professor Eduardo Svartman acrescenta outro ponto: é missão muito difícil um acordo, até porque nem o governo israelense e nem o Hamas aceitam a solução dos dois Estados nesse momento de guerra:
— Israelenses e palestinos, em outras épocas, aceitaram essa divisão territorial proposta pela ONU, mas a situação agora é de crise aguda, impasse total.
As iniciativas diplomáticas do governo brasileiro
Numa gestão que praticamente só tratou da guerra no Oriente Médio, o próprio Lula tomou a iniciativa de ligar para outros governantes, tentando implementar resoluções em nome da ONU. Conversou com o presidente de Israel, com o presidente da Autoridade Palestina, com o presidente do Irã, com o presidente da Turquia, com o presidente do Egito, com um representante dos Emirados Árabes, com o presidente da França, com o Conselho Europeu, com o emir do Catar. Ainda estava em seus planos falar com os líderes da China, Índia e África do Sul, mas a gestão brasileira frente ao Conselho de Segurança terminou antes. Lula assegura que pretende realizar essas conversas, de qualquer maneira.
— O poder do diálogo é capaz de vencer a bomba mais competente que o ser humano seja capaz de produzir. E é com o poder desse diálogo que acho que a gente vai conseguir, em algum momento, sentar na mesa — resumiu o presidente brasileiro.
Roberto Uebel considera que o Brasil teve posição ponderada, apesar de certa resistência em usar a palavra terrorismo para os ataques do Hamas:
— Foi um teste de fogo, mas saiu com uma imagem mais positiva. Acabou aceitando usar o termo terrorista, mas também condenou bombardeios de Israel, um tema sensível para o Brasil. O gaúcho Osvaldo Aranha coordenou na ONU a resolução que permitiu a criação daquele país. O protagonismo brasileiro depende de uma reforma no Conselho de Segurança quanto aos vetos.
André Reis salienta que o Conselho de Segurança reflete os impasses da própria ordem internacional, os interesses e contradições das grandes potências. E o espaço para países intermediários, como o Brasil, é limitado num contexto de crise aguda. O especialista considera que a falta de um cessar-fogo não é responsabilidade do Brasil, mas do contexto e da estrutura internacional. Admite, no entanto, que houve uma frustração com uma expectativa que não se materializou.
— O Brasil atuou com serenidade, demonstrou capacidade diplomática e buscou mediação, mas sofreu veto — resume.
Eduardo Svartman lembra que o Brasil é um dos países que mais vezes liderou o Conselho de Segurança e vivenciou, neste mês, um retorno ao protagonismo internacional, "após os governos FHC, Lula e Dilma, com retração e credibilidade perdidas nos governos Temer e, sobretudo, Bolsonaro". O especialista considera que o Brasil mostrou ser um país que merece ser ouvido nas principais mesas de negociação.
— Incluindo a alta política, as questões de guerra e paz. A atuação brasileira não compromete nessa crise que ninguém esperava. O problema é o desenho do conselho da ONU — avalia Svartman.
O impasse quanto à expressão terrorismo
Um dos motivos da abstenção dos EUA quanto à posição brasileira é que o Brasil só reconhece como organização terrorista aquilo que o Conselho de Segurança da ONU reconhece. E não se formou nas Nações Unidas esse consenso de que o Hamas é terrorista, porque ele disputou eleições na Faixa de Gaza e ganhou.
Lula ressalta que o Brasil reconheceu que o ato do Hamas foi terrorista.
— Não é possível fazer o ataque, matar inocentes, sequestrar gente da forma que eles fizeram, sem medir as consequências do que acontece depois. Agora o que temos é a insanidade também do primeiro ministro de Israel, querendo acabar com a Faixa de Gaza, esquecendo que lá não tem só soldado do Hamas, que lá tem mulheres, crianças que são as grandes vítimas dessa guerra — contemporizou Lula.
O historiador Iair Grinspun considera que a posição brasileira tentou um equilíbrio impossível. Ele ressalta que mais de 50 países consideram o Hamas um grupo terrorista e seu estatuto de fundação prega a destruição de Israel.
— O Brasil fez, na ONU, uma fala dúbia. Teve um certo pudor ao falar em ato terrorista, mas não classificar o Hamas como terrorista. Dá certa legitimidade, como se fosse apenas um deslize. Já quanto a Israel a diplomacia brasileira falou que pratica genocídio em Gaza. Termo forte, com peso maior — acrescenta Grinspun.
Já André Reis e Eduardo Svartman acham que o Brasil fez o possível, dentro das limitações estruturais que a configuração de poder apresenta. Lembram que a posição brasileira, de equilíbrio no discurso, está em consonância com seus postulados históricos sobre o conflito (existência de dois Estados — palestino e israelense —, crítica aos assentamentos israelenses, solução pacífica). E também com a maioria dos países do mundo. Isso credenciaria o Brasil como capaz de conversar com os dois lados e seus aliados.
Ucrânia e Haiti
A guerra que estourou em outubro no Oriente Médio eclipsou outros conflitos e impasses, como a invasão russa da Ucrânia e a necessária estabilização no Haiti. E o Brasil não pautou o assunto.
Os especialistas consultados por GZH acreditam que são dois os principais motivos. Primeiro: não surgiram desdobramentos novos desde a última discussão do tema no Conselho de Segurança, em setembro. E, mais que isso, a Rússia é membro permanente do Conselho de Segurança e tem direito a veto nas decisões — fator que reforça a tese brasileira de ampliar o colegiado.
Quanto ao Haiti, a gestão brasileira no Conselho de Segurança aprovou envio de forças internacionais policiais para estabilizar o país caribenho, que teve 2,5 mil assassinatos neste ano. Só que o Brasil decidiu não participar (a missão será liderada pelo Quênia, com ajuda de países caribenhos).
Os especialistas ouvidos pela reportagem entendem que a diplomacia brasileira está receosa de questionamentos que poderiam expor as tropas brasileiras a críticas, como já aconteceu quando liderou uma missão militar da ONU (a Minustah) no Haiti.