Maria Kohut Stefansawka tinha sete anos quando desembarcou na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro, em 1948. Chegou de navio com os pais, vinda da Alemanha. A Segunda Guerra havia terminado, e o país europeu estava em ruínas. Ficar não era opção. Voltar para a terra natal, a Ucrânia, de onde a família havia saído, era uma decisão improvável.
– Estava nas mãos dos russos – lembra Maria.
Com o fim do conflito, as fronteiras da Ucrânia foram ampliadas na direção Oeste, unindo a maior parte dos ucranianos sob uma única entidade política, a bandeira soviética. Uma das tantas histórias que o pai, Stefans, contava era sobre os extensos hectares de terras no interior de Lviv. Com a Revolução Russa de 1917, o comunismo venceu, e a Ucrânia, que já fora do Império Russo e vira renascer um forte movimento nacional em prol da autodeterminação, passara a integrar a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
– Confiscaram tudo. Disseram: “Tu ficas com uma galinha, uma vaquinha e um porquinho. E se tua vaca der mais leite do que precisas, tu ainda vais dar esse leite (para o Estado) – conta Maria.
Assim, Maria, o pai Stefans e a mãe Anna embarcaram na segunda opção oferecida pelo governo alemão: vir para o Brasil. Localizada no interior da Baía da Guanabara, em São Gonçalo, a Ilha das Flores era uma espécie de hospedaria para imigrantes desde 1883. Ainda que disputassem um cano enorme para tomar banho, no qual “todo mundo se enfiava embaixo”, conforme Maria, os recém-chegados tinham, no local, boa estrutura. Ela calcula ter ficado na ilha durante cerca de três meses. Depois, vieram para o Rio Grande do Sul. Em Canoas, Região Metropolitana de Porto Alegre, que à época era uma imensa área verde com pouquíssimas casas, ela e os pais recomeçaram a vida.
Mas a distância de casa nunca foi motivo para perder os laços com a Ucrânia. Até morrer, em 1989, Stefans trocou correspondências com os parentes no país, tradição que Maria cultiva até hoje. Primeiro por carta, depois por e-mail e, hoje, por videochamadas. Desde 24 de fevereiro, início da invasão da Ucrânia pela Rússia, o tema das conversas pouco varia.
– Cada vez que ouço que lançaram um míssil em Lviv, chega a me dar uma coisa – diz Maria, hoje com 81 anos – Meu primo disse que a janela da casa deles tremeu toda. Imagina como (a explosão) foi pertinho.
Apesar do perigo do conflito, que já supera os cem dias, a família ucraniana decidiu permanecer no país, para aperto do coração de Maria, que acompanha as notícias pela TV, em Canoas. Localizada no oeste da Ucrânia, próxima à fronteira com a Polônia, Lviv, a cidade onde vivem os familiares de Maria, tem sido relativamente poupada dos ataques russos. Mas isso não significa que os foguetes, eventualmente, não caiam por perto. Um deles, em 13 de março, atingiu um campo de treinamento militar em Yavoriv, no qual 134 pessoas ficaram feridas. Outro, em abril, destruiu uma instalação próxima a uma estação ferroviária, matando sete pessoas e ferindo 11. A cidade, na qual GZH esteve em março, também convive com o drama diário das sirenes antiaéreas, que, a cada soar, obrigam moradores a correr para o abrigo. Cenas como essas, vistas pela TV, fazem Maria lembrar da única viagem que fez à terra onde nasceu.
– Depois de 70 anos, fui conhecer minha família. Eram cinco primas, maridos e netos. Nem preciso te dizer a emoção que senti – conta, com lágrimas nos olhos. – Conheci a casa onde nasci, a igreja que meu pai frequentava e fui ao túmulo dos meus avós.
Por ser ucraniana, neste ano, durante as celebrações da Sexta-feira Santa, ela representou a comunidade na cerimônia do Lava-Pés, na Catedral Metropolitana, em Porto Alegre.
– Imagina a minha emoção. Eu com 81 anos, e o arcebispo beijando o meu pé. Ganhei um ataque de choro – sorri. – Olha que graça eu alcancei de, aos 81 anos, representar a minha pátria.
É entre recordações emocionadas, videochamadas com os parentes que ficaram no país em guerra e arroubos de dor e raiva que os ucranianos e descendentes que moram no Rio Grande do Sul acompanham o conflito no Leste Europeu. O Brasil abriga a maior comunidade ucraniana na América Latina, cerca de 500 mil a 600 mil pessoas. A maioria está no Paraná. No Estado, boa parte vive em Canoas. São cerca de 50 famílias.
As histórias de cada um se assemelham com a de Maria: pais que cruzaram o Oceano Atlântico desde o final do século 19. Em 23 de agosto de 1891, no Rio de Janeiro, foi registrada a entrada dos primeiros ucranianos no Brasil, oriundos da cidade de Zolotiv, na região de Lviv. Maria integra a onda mais recente, pós-1945, quando vieram em busca de dias melhores. Na comunidade, Maria conheceu o marido, que chegou com 12 anos. Também fez amizades que duram uma vida inteira. Ela e as amigas reúnem-se semanalmente no salão da Paróquia da Santíssima Trindade, igreja de rito ortodoxo ucraniano, no bairro Niterói.
No grupo, também está Swetlana Margaret Cvirkun Urbanskyy, 62 anos. Os pais de Lana, como é conhecida, também chegaram da Alemanha e permaneceram um tempo na Ilha das Flores, antes de serem alocados no Sul.
– Chegaram aqui e moravam em espécie de cortiços, casas com várias famílias – conta Lana, que nasceu no Brasil, fruto da união de Leonid e Ewhenia, ambos ucranianos.
Lana recorda que, perto do Rio dos Sinos, havia um frigorífico, que ofereceu trabalho aos primeiros migrantes. Como os ucranianos recém-chegados estavam habituados às baixas temperaturas, não foi difícil. Em casa, as crianças maiores cuidavam das menores, enquanto os adultos trabalhavam. Nos meses seguintes, a comunidade sentiu a necessidade de criar um local para espiritualidade. E, assim, nasceu uma igreja de madeira, o primeiro templo no local da atual paróquia.
– Agora, em função da guerra, apareceram ucranianos por tudo quanto é lado. Ficamos felizes. Há ucranianos em Ivoti, Porto Alegre, em Canoas – diz ela.
Um momento de confraternização foi uma campanha de arrecadação de roupas para o envio a refugiados. Depois, houve o sucesso da seleção ucraniana durante a Surdolimpíada, realizada em Caxias do Sul, em maio. A 11 mil quilômetros do conflito, os atletas, que compuseram a maior delegação da competição, conquistaram 138 medalhas, mais do que o dobro do que os segundo colocados, os Estados Unidos.
– Aqui, mostramos ao mundo que existimos, que somos um país poderoso, independente e democrático – disse Valerii Sushkevych, presidente do Comitê Paralímpico Ucraniano à agência de notícias AFP. – Um soldado nos ligou e disse: “Entre tantas batalhas, assistimos as suas provas na TV. Seu espírito de luta é muito importante para nós.
Em Canoas, a mobilização da comunidade resultou em um salão de festas lotado de doações. Foram tantas roupas que parte precisou ser vendida em um brechó realizado no domingo passado, na festa da patriarca, a Santíssima Trindade. O dinheiro será revertido para apoio aos refugiados. Na roda de amigas da comunidade, as conversas sobre a guerra se tornam inevitáveis.
– Já sabíamos que a coisa estava indo mal desde novembro. Em 2014, já teve aquele baita conflito (a ocupação da Crimeia). Na minha visão, na cabeça das pessoas da Rússia, a Ucrânia é parte dela. Não aceitam nossa independência. E ainda tem um cara (Vladimir Putin) louco no poder...
A fala é de Lana. Ela lança perguntas no ar, como quem busca explicações. O conflito atual fez reviver, na memória do pai, Leonid, aos 86 anos, as lembranças da guerra na Europa, realidade que viveu entre 1939 e 1945.
– Para ele, a guerra não é uma novidade – afirma.
Mesmo com a nação de seus pais sob ataque dos russos, Lana é crítica em relação ao governo ucraniano para um cessar-fogo.
– Está morrendo um monte de gente que não tem nada a ver com isso. Por que o Zelensky não abre mão de alguma coisa? – pergunta, referindo-se ao governo de Volodimir Zelensky.
– Acho que ele (Zelensky) deveria dar de uma vez o Donbass (para a Rússia) – pondera Maria, referindo-se à região das províncias de Donetsk e Luhansk, motivo alegado pelo Kremlin para a invasão.
Celebrando as tradições
Só a comida típica leva a uma pausa no assunto político.
– Varenek? – oferece Oliana Reszetiuk.
Diante do olhar de dúvida do repórter, Maria lasca:
– Não! Tu estiveste na Ucrânia e não comeste varenek.
– Na guerra não tem comida – grita alguém.
E, assim, as mulheres iniciam a preparação do varenek, carro-chefe da comida típica ucraniana, que consiste em um pastelzinho cozido recheado com batata ou bacon, com cebolinha e especiarias.
– E o borsch – pergunta Oliana.
– Tu provaste?
– Também não – respondo, para indignação de Maria.
O borsch é outra comida típica ucraniana. Trata-se de uma sopa de cor avermelhada, preparada com carne, beterraba, repolho e tomate picado.
– É sopa para o frio! – garante Oliana.
A cultura ucraniana é farta não apenas em comida, mas também em símbolos. Durante as celebrações da Páscoa, que ocorre em dias diferente dos católicos, os ucranianos presenteiam-se com a pessenka. São os famosos e coloridos ovos de galinha, delicadamente pintados, que expressam desejos de prosperidade, fertilidade, religiosidade e amizade. O desenho é como um talismã: cada traço na casca do ovo tem um significado. As babushkas (vovós) dizem que toda família tem de ter um desses símbolos em casa. E se, eventualmente, quebrar é porque as “coisas ruins” foram embora.
Assim como a pessenka, a dança é uma forma de manter viva a tradição. A cada ano, a comunidade no Brasil realiza o Festival Nacional de Danças Ucranianas, que já ocorreu em duas ocasiões no Estado. A alegria está expressa na coroa com faixas nas cores da natureza e no bordado das blusas – cada cor simbolizando uma região da Ucrânia. Elas são usadas pelas mulheres, enquanto os homens vestem calças vermelhas, largas como bombacha, outrora usadas pelos cossacos.
– Passamos de geração para geração essa tradição, é o que nos move. É uma dança quente, que te empolga. Ela cresce ao longo das danças, até o hopak, que é o auge – conta Lala.
A filha de Oliana, Íris Gabriela, nove anos, dança desde que estava em sua barrida, segundo a orgulhosa mãe. Desde que a pandemia diminuiu de intensidade, a menina voltou a ensaiar com o grupo.
– Não precisava guerra. Não sei direito porque começaram – lamenta Íris.
Dúvidas sobre o por quê de tamanha violência aparecem também quando o grupo comenta sobre uma das maiores festas da comunidade, o Dia da Independência, comemorado em 24 de agosto.
– E agora nem sabemos mais se somos independente ou não – lamenta Oliana.
O ritual religioso ucraniano guarda semelhanças com a Igreja Católica romana. Mas há diferenças. Antigamente, não batizados não poderiam passar da primeira parte da Igreja. Durante as celebrações, homens ficavam sentados à direita, enquanto as mulheres eram posicionadas à esquerda. Os ortodoxos não veneram santos, como os católicos, mas os respeitam.
– Cada missa é para agradecer: ao mel, aos ícones (símbolos). Aqui, tu estás sempre agradecendo alguma coisa – diz Oliana.
A hóstia, conforme o rito, é feita pelo próprio padre. A vela é com cera de abelha. No templo canoense, reconhecido à distancia pelas abóbadas, também há espaço especial para homenagem aos mortos. Os ortodoxos celebram missa de nono dia para os falecidos, não no sétimo, como na Igreja Católica. E, segundo a tradição, os fiéis levam um prato – bombons, cuca, bolo, frutas, que, ao final da cerimônia, é oferecido aos demais.
Em nível político, no dia 27 de maio, a Igreja Ortodoxa Ucraniana anunciou sua ruptura com o Patriarcado de Moscou devido ao apoio aberto à operação russa na Ucrânia. Por meio de comunicado, o Conselho da Igreja tomou a decisão de declarar “a plena autonomia e independência da Igreja Ortodoxa Ucraniana”.
Viagem de volta está marcada
Nataliia Shvets Konrad, 33 anos, não se considera muito religiosa, mas aprecia as tradições culturais ucranianas. Em sua residência, em Porto Alegre, por exemplo, comemora dois Natais (25 de dezembro e 7 de janeiro) e duas Páscoas – a católica e a ortodoxa. A filha Katharina, de seis anos, já sabe: em uma festa, ganhará como presente ovos de chocolate, trazidos pelo coelho; em outra, a família irá pintar os ovinhos de galinha, as pessenka. Mãe e filha conversam, em casa, apenas em ucraniano.
Nataliia nasceu em Globyne, região de Poltava, na área central da Ucrânia. Ela formou-se em Economia na Kyiv National University of Trade and Economics, na capital, onde morou até 2013. No país, conheceu o jornalista gaúcho Kaiser Konrad, com quem se casou. Da união, veio a mudança para Porto Alegre.
– Moro no Brasil, mas meu coração continua na Ucrânia – diz Nataliia.
A família passa quase todo o verão europeu na casa dos avós. Mesmo durante a pandemia de covid-19, Nataliia decidiu ficar seis meses na Ucrânia. Com o início da atual guerra, os vídeos são diários com os pais, que ficaram em Globyne. Além da preocupação, um outro atrativo tem chamado atenção da filha.
– Ela está louca para ver os avós. Meu pai manda fotos das cerejeiras cheias de flores – conta Nataliia.
Nas últimas semanas, a angustia deu lugar à ação. Nataliia decidiu viajar com a filha para a Ucrânia. Ela comprou passagem para a Polônia e irá entrar de ônibus no país em conflito.
– É muito difícil ficar longe, entendendo que a coisa deve durar ainda vários meses. Saber que não vou poder ver meus pais. Não sei o que pode acontecer amanhã – diz.
Sair da Ucrânia não é uma opção, o que, segundo ela, diz muito sobre o modo de pensar dos ucranianos – ficar é uma questão de resistência diante dos russos.
– A primeira coisa que pensamos é em como proteger nossa casa. Eles querem proteger a casa deles. Como deixar? Tu passaste a vida inteira lá, construíste tua casa, tem o jardim com as cerejeiras. E tu vai sair? – questiona. – Não – diz ela. – Todo mundo quis defender suas casas. Todas as minhas amigas, quando a guerra começou, não quiseram sair. Algumas só saíram depois que se passaram algumas semanas e as crianças estavam neuróticas por causa das sirenes antiaéreas. Algumas foram para o oeste do país, mas todo mundo está sonhando em voltar.
Além disso, o pai de Nataliia tem 56 anos – ucranianos entre 18 e 60 anos estão proibidos de deixar o país, porque podem ser convocados para o esforço de guerra. A mãe cuida do pai, idoso.
– Ela só vai sair se uma bomba cair na cabeça dela e não houver outra opção – afirma.
Uma bomba chegou a atingir uma área a cerca de 40 quilômetros da residência dos pais, que relatam problemas de combustível no país:
– O primeiro mês foi um inferno. Conversamos todos os dias. Pensamos em um plano B, caso não tivesse internet. A primeira coisa a fazer era não entrar em pânico. Um dia parecia que era um ano. Depois, veio a aceitação, a gente até fez um plano, caso alguém morresse. Pensamos em tudo. Mas, graças a Deus, até hoje…
A resistência dos pais, segundo Nataliia, explica em parte porque os ucranianos estão suportando a invasão russa. Lá se vão mais de cem dias de guerra e as vitórias do Kremlin são poucas. Mesmo assim, ela não acredita em uma solução rápida para o conflito.
– A Rússia tem bastante armamento. Ao mesmo tempo, nosso povo está sofrendo, está morrendo. O único jeito de terminar com essa guerra é se tentar renovar as negociações. Desde que os russos saiam da Ucrânia – comenta.
Apesar da guerra, Nataliia diz não sentir raiva dos russos.
– Há muitos que não entendem essa situação. Mas, mesmo conversando com qualquer um, chega-se um ponto em que surge o assunto e dá para ver que eles se acham melhores do que os ucranianos. Não é verdade.
Os russos vivem bem apenas em Moscou e em São Petersburgo, no resto vivem mal, em comparação com a Ucrânia – pondera.
A visão de Nataliia é semelhante à de Maria, 81 anos, que veio de Lviv, e integra a comunidade em Canoas:
– O povo não tem culpa. Meu pai dizia: “Se vem um doido e faz aquilo, por que o povo tem de pagar?”. A gente não pode dizer que odeia os russos. Aqui, no Brasil, a gente se dá bem com os russos. Tenho comadre russa. E os soldados, muitos não queriam estar lá.
Nessa linha, no último domingo, o padre Edison Filakosko, que celebrou missa em honra à padroeira da igreja em Canoas, pediu uma oração pelos irmãos que defendem a pátria. E acrescentou:
– Temos uma igreja ortodoxa russa em Porto Alegre, dos irmãos russos. Uma vez que somos todos irmãos e acreditamos no mesmo Deus, apenas as nações separam – afirmou.