Nesses cem dias de guerra na Ucrânia, há alguns marcos a serem lembrados: os primeiros dias de fúria e fogo sobre a capital ucraniana, Kiev, a coluna de tanques que nunca chegou à cidade e, por fim, o recuo graças à intensa - e inesperada resistência das forças armadas ucranianas, auxiliadas pelo envio de armamentos de países da Europa e dos Estados Unidos e pela ação de legionários provenientes do Exterior.
Depois, veio o horror e a carnificina dos bombardeios a inocentes em retirada, do teatro e da maternidade de Mariupol, cidade portuária massacrada até a rendição. E, desde 18 de maio, o foco de Valdimir Putin é no Donbass, a região leste do país, onde vive a população de falantes russos e estão localizadas as províncias separatistas de Donetsk e Luhansk.
No campo internacional, a Ucrânia consolida-se como peça no tabuleiro de xadrez entre Estados Unidos e Rússia. As sanções econômicas isolaram o Kremlin, que responde fechando as torneiras do gás de vários países europeus, um a um. Como já se viu em Cuba, Coreia do Norte e Irã, nunca punições econômicas calaram os canhões nem impediram as ambições de líderes autoritários, mas esse tem sido o mecanismo utilizado até agora para tentar conter a guerra - pouco tem funcionado.
Há cem dias, o mundo mergulhou em um conflito que, a essa altura, se anuncia longo e imprevisível.
Embora não se possa prever o que passa na cabeça de Putin, é provável que tenhamos mais (pelo menos) cem dias de guerra pela frente. A menos que o autocrata do Kremlin tire da cartola uma vitória construída por meio de uma narrativa triunfante - e falsa. Mas, como já comentei aqui, ele tem elementos para isso: Putin conseguiu, nesses pouco mais de três meses de guerra, que a Ucrânia não ingresse na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), seu argumento para a invasão, poderá dizer que "desnazificou" o país e está perto de tomar as províncias de Lugansk e Donetsk. E, com a queda de Mariupol, ele conseguiu a "ponte" terrestre para a Crimeia. Para o público interno, desprovido de mídia independente, a palavra final do Kremlin é o que basta.
A seu favor, Putin conta com o que a ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, chamou de "fadiga da guerra".
Esse é o problema, o Ocidente, em sua ânsia por velocidade, costuma se cansar rápido demais de um tema - e inclusive se iludir de que a guerra seria rápida. Com a Crimeia, em 2014, foi assim. A invasão russa causou estupor em um primeiro momento, protestos, revoltadas, ameaças, mas, logo em seguida, caiu no esquecimento. E, mesmo que a área não seja reconhecida como russa, a comunidade internacional se acostumou, infelizmente, à presença das tropas de Putin na península. Até uma imensa ponte foi construída entre o território russo e a Crimeia, inaugurada pelo presidente em um símbolo máximo da conquista.
Assim, infelizmente, pode ocorrer com a guerra da Ucrânia. O Ocidente se "fatigar" do conflito - e Putin ir, aos poucos, tomando conta de nacos de território ucraniano. Primeiro a Crimeia, agora o Donbass, e assim ele vai redesenhando o mapa do país.