O avanço dos tanques russos sobre a Ucrânia ajuda a ilustrar um outro tipo de marcha em curso na atualidade: a transição do mundo formado logo após o fim da Guerra Fria, sob a liderança solitária dos Estados Unidos, para um novo cenário global com múltiplos polos de poder.
Analisado pelo prisma das relações internacionais, o conflito deflagrado por Vladimir Putin reflete, muito além dos interesses diretamente envolvidos no combate, um reordenamento de forças marcado pela decadência do Ocidente, com o fim da hegemonia americana, em contraste com a ascensão da Ásia como potência militar e econômica sob liderança chinesa.
Na avaliação de especialistas consultados por GZH, Putin só se sentiu encorajado a puxar o gatilho ao olhar pelas janelas do Kremlin e contemplar um mundo diferente daquele de duas décadas atrás. A principal mudança é o fim da antiga ordem criada logo após a vitória americana na Guerra Fria e a extinção da União Soviética.
— Estamos em transição de um momento de um único polo global, representado pelos Estados Unidos, tendo a União Europeia como sócio menor, quando a Rússia estava em desarranjo e a China ainda não era a potência de hoje, para uma etapa de intensificação das relações entre Rússia e China que cria um novo polo de resistência ao Ocidente e a sua agenda — analisa o pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Leonardo Paz Neves.
Essa resistência inclui barrar a aproximação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), espécie de braço armado dos ocidentais, de suas fronteiras. Poucas semanas antes do início da guerra, Putin foi recebido pelo líder chinês, Xi Jinping, que classificou a parceria entre os dois como “inabalável” – dentro desse espírito, a China tem se recusado a condenar a carga russa rumo a Kiev. Escorado pela parceria econômica e estratégica com os chineses, Putin aproveitou o que muitos orientais percebem como “decadência” do Ocidente para agir na Ucrânia e tentar afastar a Otan da vizinhança.
Essa fragilidade inclui fiascos militares de forças ocidentais em regiões como Iraque e mais, recentemente, Afeganistão, que predispõem a opinião pública a negar apoio a novas incursões bélicas.
— A expansão da Otan foi circunstância de um mundo unipolar em que a Rússia estava enfraquecida e a China não tinha a projeção econômica atual. Agora vivemos em um ambiente de múltiplos polos, em que nenhuma das ex-superpotências ou uma potência emergente como a China pode definir sozinha, ou com apenas um interlocutor, como vai funcionar o sistema internacional — opina o doutor em ciência política Eduardo Svartman, presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed) e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Resta saber o quanto uma aliança entre China e Rússia é viável, dado que os chineses seriam o parceiro mais forte
LEONARDO PAZ NEVES
Pesquisador da FGV
Se o Ocidente titubeia e o efeito das sanções impostas a Moscou ainda é incerto, os chineses e sua crescente área de influência seguem se fortalecendo. Um dado simples ajuda a entender a nova dinâmica internacional: nos anos 1990, a China respondia por cerca de 1,5% da economia mundial. Em 2000, ainda era pouco mais de 3,5%. Hoje, se aproxima de um quinto de toda a riqueza produzida ao longo de um ano no planeta.
Ambiciosos, os chineses lançaram ainda a iniciativa conhecida como Nova Rota da Seda, que procura financiar projetos de infraestrutura em países em desenvolvimento para confirmar presença muito além de suas muralhas.
— Resta saber o quanto a aliança entre China e Rússia é viável, dado que os chineses seriam o parceiro mais forte. A dúvida é se Putin ou os próximos presidentes russos estariam dispostos a assumir o papel secundário — observa Neves.
Outra dúvida é se os EUA vão se acomodar a esse novo cenário ou poderão entrar em rota de colisão contra a real ameaça a seus interesses geopolíticos globais – não a Rússia, mas a China.
— Vivemos um momento de inflexão da ordem mundial. Há teorias de relações internacionais que preveem um choque entre a potência hegemônica e a ascendente. Mas não acredito que os chineses vão trazer mais tensão ao mundo. A China ascendeu em um sistema internacional capitalista. Seu interesse é apenas fazer ajustes no atual sistema internacional que a beneficiem cada vez mais — aposta o coordenador da especialização em Relações Internacionais e Diplomacia da Unisinos, Marcos Aurélio Reis.
Brasil pode se beneficiar de novo arranjo global, dizem especialistas
O Brasil pode tirar vantagem de um mundo menos centralizado, na visão de especialistas em relações internacionais. Para isso, precisa resgatar sua tradição diplomática baseada em equilíbrio, confiança nas instituições multilaterais e capacidade de diálogo com diferentes blocos sem se alinhar automaticamente a nenhum – diferentemente do que o país fez recentemente em relação à gestão de Donald Trump na Casa Branca.
— Em tese, o Brasil pode se beneficiar de uma ordem mundial multipolar. Isso aumenta o poder de barganha de países grandes como o nosso, com uma das maiores populações do mundo, uma das maiores produções de proteínas animal e vegetal, reservas de petróleo e tradição diplomática — acredita o doutor em ciência política e professor da UFRGS Eduardo Svartman.
Svartman explica que, como os brasileiros nunca foram uma potência militar, se habituaram a jogar “conforme as regras” – valorizando e respeitando organismos como Organização das Nações Unidas (ONU), Organização Mundial do Comércio, entre outros.
— Diferentemente das grandes potências, que usam as instituições e as abandonam quando convém, o Brasil tem tradição de fortalecê-las, o que é muito bem visto por nossos vizinhos, por africanos, asiáticos. Poderíamos protagonizar negociações internacionais, mas, para isso, é preciso ter liderança e uma agenda, o que, no momento, nos falta — complementa o professor da UFRGS.
Para o pesquisador da FGV Leonardo Paz Neves, seria um erro o Brasil se alinhar automaticamente a qualquer lado nesse novo tabuleiro do xadrez geopolítico.
— A Coreia do Sul ganhou muita coisa dos americanos, nos anos 1970, 1980, graças ao alinhamento automático porque ficava em uma região chave para os Estados Unidos naquele momento. O Brasil, em compensação, ganhou um golpe militar — compara Neves, fazendo referência ao apoio dado pelos EUA ao regime imposto em 1964.