Uma pequena Rússia sobrevive na região missioneira, no noroeste do Rio Grande do Sul. É em Campina das Missões que está radicada uma das maiores concentrações de russos ortodoxos do Brasil. É lá também que os apelos por liberdade, feitos pelo governo da Ucrânia, são encarados com algum ceticismo e desconfiança.
— Os ucranianos são nossos irmãos eslavos, ninguém é favorável ao conflito, mas é bom lembrar que o governo ucraniano promoveu um genocídio de civis etnicamente russos na região do Donbass, a partir de 2014. Agora a Rússia contra-atacou — interpreta o advogado Jacinto Zabolotsky, líder comunitário em Campina das Missões, cidade com 5,3 mil habitantes, um quarto dos quais de origem russa.
Jacinto preside a Associação Cultural Russa Volga do Brasil. Ele fala russo, se considera russo e ama a Rússia (como é usual entre seus conterrâneos campinenses). O avatar do seu WhatsApp é uma foto dele junto à catedral de São Basílio, em Moscou. Compreensível. O russo é idioma corrente em Campina das Missões desde 1909, quando levas de migrantes desembarcaram ali, fugindo de perseguições e do frio. Os seus descendentes cultivam as tradições e acompanham com interesse tudo que se refere à Mãe Rússia.
Um deles até se especializou no assunto. Filho de Jacinto, Boris Zabolotsky é doutorando em Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com mestrado em estudos estratégicos sobre relações entre Rússia e Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no pós-guerra fria. Morou em Moscou e já retornou várias vezes lá nos últimos 10 anos.
Até pelo trabalho prévio, Boris sustenta que a ocupação da Ucrânia, ocorrida agora, vinha se delineando há muito tempo. Ele atribui isso a vários fatores históricos e conjunturais.
No campo da História: o Império Russo, lembra ele, abrangia boa parte da Ucrânia, Belarus e Ásia Central. Os povos dali eram cidadãos russos, inclusive os que migraram para o Rio Grande do Sul em 1909. A maioria desses era da região leste ucraniana, mais próxima à Rússia, de confissão cristã ortodoxa (ergueram em Campina das Missões o primeiro templo dessa religião no Brasil). Já a parte ocidental da Ucrânia, mais próxima à Polônia, era menos vinculada ao Império Russo e tem maioria católica (acabaram se radicando mais no Paraná).
Um outro grande grupo de ortodoxos se radicou em Porto Alegre e inclusive tem uma igreja, a São Sérgio de Radonej, situada no bairro Santa Maria Goretti. Eles também se consideram russos e, assim como na região das Missões, temem atos xenófobos contra seus compatriotas no Brasil.
— Nossos fiéis, na maioria idosos, estão muito preocupados. Claro que somos contra a guerra na Ucrânia ou em qualquer outro lugar do mundo. Oramos pela paz na Ucrânia, na Rússia e no mundo — resume o padre Anatolie Topala, dirigente da igreja ortodoxa em Porto Alegre.
Já em Campina das Missões a guerra também é repudiada, mas com ressalvas. Jacinto Zabolotsky, por exemplo, atribui o conflito à insistência da Otan em avançar para o Leste Europeu e ao esvaziamento da posição russa no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). Tudo isso é visto pelos russos como um cercamento. Ele ressalta que o atual presidente ucraniano, um outsider proveniente da cena artística, prosseguiu na linha de integrar a Otan.
— Historicamente, ucranianos e russos sempre viveram em paz. A separação para valer começou em 2014, com o golpe de Estado na Ucrânia, apoiado por fascistas. Os Estados Unidos e a Otan armaram milícias neonazis ucranianas e o governo ucraniano promoveu genocídio de civis etnicamente russos na região do Donbass. Há temor de Putin quanto à ressurreição do programa nuclear ucraniano e, por isso, os russos tomaram agora Chernobyl. Os russos tomaram bases militares para evitar revide ao seu país — acredita Boris Zabolotsky.
Boris é um dos dirigentes da Organização dos Jovens Compatriotas Russos no Brasil, que lançou nesta segunda-feira (28) nota em que faz uma espécie de justificativa das ações russas.
"Após anos de tentativas infrutíferas de diálogo e negociação de uma solução com o governo de Kiev (Ucrânia), a Federação Russa decidiu agir em defesa de sua soberania e segurança nacional, empreendendo uma operação militar cujos objetivos são os de garantir a segurança e a estabilidade da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk, e que a Ucrânia não seja integrada à Otan e não sirva de plataforma de atuação dos interesses geopolíticos e militares do Ocidente", diz a nota.
GZH ouviu alguns ucranianos-gaúchos, de origem ortodoxa (do Leste), que também apoiam a destituição do governo de Kiev, mas preferem omitir o nome para evitar polêmica. Mas a reportagem entrevistou ainda o padre ortodoxo ucraniano Gregório Filakoski, que conduz cerimônias na paróquia Santíssima Trindade, em Canoas, e no Paraná. Ele assegura que esse apoio a ações russas é minoritário entre ucranianos, mesmo os ortodoxos.
— O povo ucraniano, desde antes da União Soviética, sempre sofreu ataques dos nossos irmãos russos. É uma terra muito fértil e rica em minérios, ambicionada. Não foi quebrado qualquer acordo, aquelas terras pertencem à Ucrânia, mesmo onde se fala russo. A Rússia não tinha por que colocar o dedo lá. É dolorido. Tenho familiares lá: sogra, sogro... Estou com o coração na mão, são tempos de desespero — conclui Filakoski.