Por Eduardo A. Vizer
Doutor em sociologia, professor catedrático emérito da Universidade de Buenos Aires (UBA)
Nos primeiros dias de junho ocorreu um encontro entre o presidente Alberto Fernández, da Argentina, e Pedro Sánchez, premier espanhol. A partir desse dia, diversos meios de comunicação passaram a comentar as palavras de Fernández – por meio das quais comparava a origem dos povos latino-americanos – considerando-as equivocadas e preconceituosas. Fernández disse que “os mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros, da selva e nós, argentinos, chegamos da Europa em barcos”. Agregando, ainda: “O meu (sobrenome) Fernández é uma prova disso”.
Em primeiro lugar, essa não é uma prova, mas só um exemplo entre as milhares de pessoas que se chamam Fernández na América Latina. Para os brasileiros do Sul e do Leste, que “não vieram da selva”, mas igualmente de barcos – da Europa, principalmente – parece estranha a comparação, já que compartilham a origem com argentinos e uruguaios, entre outros povos da América.
O descontentamento com a afirmação de Fernández surge especialmente da conotação preconceituosa implícita sobre a origem selvática dos brasileiros. Certamente, os descendentes de portugueses e espanhóis podem se considerar “latinos”, mas os descendentes de de índios, negros e imigrantes de Oriente Médio, do Japão e de outros países europeus, que igualmente povoam o Brasil, não correspondem a essa categoria.
A predominância latina se manifesta em especial na cultura e na língua compartilhadas entre os americanos do Centro e do Sul. Os do Norte têm língua e cultura inglesas e em menor escala o franco-canadense, mas não escapam da categoria “afro” nem da indo-latino-americana, compartilhada com os americanos do Centro e do Sul. Trata-se de uma região geográfica divisível em três (incluindo a América Central). Ou em duas: América do Norte franco-inglesa (Estados Unidos e Canadá, com exceção do México) e Américas Central e do Sul, que são demográfica e culturalmente indo-afro-latinas. Por isso, se deixarmos de lado a natureza étnica, podemos levar em conta só as línguas predominantes: espanhol, português, inglês, francês e as numerosas línguas nativas. Essa é a razão pela qual é mais apropriado falar em “indo-afro-américa”, e não “latino-américa”: trata-se das múltiplas diferenças entre as Américas.
Para começar a entender a peculiaridade das nações americanas, devemos considerar que sua origem se constituiu a partir de regiões e sociedades que sofreram ao menos três correntes de colonização: espanhola, portuguesa e inglesa (francesa em menor escala). As três marcaram a colonização com características militares, institucionais, econômicas e culturais diferentes. Se não se consideram as peculiaridades de cada uma, é impossível entender certas características culturais, sociais e institucionais não apenas de cada região, como também de cada país. América Latina não é “latina”, nem no Sul, nem no Centro. É predominantemente anglo-francesa no Norte. E, demográfica e culturalmente, indo-afro-latina no Centro e no Sul do continente. Falar de América Latina é um clichê europeísta.
O Norte desenvolvido com hegemonia anglo-saxônica apresenta sociedades de história recente – algo mais que dois séculos, com exceção de Quebec, que antecede a colonização anglo-saxônica massiva. Aí se observam Estados solidamente organizados e estabelecidos de acordo com as instituições modernas, regime político liberal democrático e economia capitalista avançada. Já no Centro e no Sul, o continente é um conglomerado heterogêneo de culturas, línguas e sociedades que se encontram em permanente adaptação, com instituições adequadas as sociedades diversas e multiculturais (Evo Morales na Bolívia é um exemplo, pois é um presidente indígena aimará eleito para liderar as “diferentes nações” que compõem o país).
Nos países do continente americano, se produz um amálgama crítico e complexo, não sempre exitoso, de tradições nativas autóctones, de populações transplantadas à força (os escravos trazidos da África por quase três séculos) e colonizadores de origem sobretudo latina (espanhóis, portugueses e europeus em geral). O amálgama de sociedades americanas retrata a presença centralizada do Estado, mas pouca presença de instituições representativas dos setores médios e marginais da sociedade. A América é histórica e inevitavelmente multicultural, tanto em sua origem como em seu destino. A história dará seu veredito.