Para evitar uma tragédia alimentar na América Latina e no Caribe, a Organização das Nações Unidas (ONU) defende que os países da região implementem um auxílio temporário contra a fome focado nas populações mais vulneráveis e facilitem créditos para produtores rurais. Cerca de 83,4 milhões de pessoas podem terminar o ano de 2020 na extrema pobreza — quase duas vezes a população da Argentina — por conta dos efeitos da pandemia de covid-19, que agrava a fome e a insegurança alimentar na região
Para evitar a piora desse cenário, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) propuseram nesta semana a criação de dois auxílios: um apoio temporário em dinheiro ou alimentos para os mais vulneráveis e a concessão de créditos facilitados para que produtores rurais e pequenas empresas possam continuar na atividade.
Além da queda da renda familiar, alguns países observaram redução da produção devido a problemas nas cadeias de alimentos. Segundo as duas organizações, a pandemia teve pelo menos cinco impactos na região: diminuiu a atividade econômica dos principais parceiros comerciais, como Estados Unidos (EUA), China e União Europeia (UE); derrubou o preço de produtos primários exportados; interrompeu o funcionamento das cadeias globais de valor e de alimentos; reduziu a demanda por serviços de turismo e não agrícolas e, por fim, piorou a situação financeira.
Na prática, FAO, CEPAL e outros organismos das Nações Unidas fazem recomendações aos países e não têm mandato para determinar a execução das medidas. Cabe aos governos nacionais e países-membros dessas instituições decidirem pela implementação ou não das propostas.
Como funcionaria
A primeira proposta é a de um auxílio contra a fome complementar às rendas emergenciais que países como o Brasil adotaram. Segundo as entidades, ele poderia ser em forma de transferência monetária, cesta básica ou cupom de alimentos para a população em extrema pobreza — ou seja, que vive com menos de US$ 1,90 por dia. FAO e CEPAL concluíram que não faltam alimentos, e sim renda para que milhões de famílias possam comprar comida. O custo desse programa é estimado em US$ 23,5 bilhões — equivalente a 0,45% do Produto Interno Bruto (PIB) regional.
A segunda proposta trata da concessão de créditos e investimentos não reembolsáveis para produtores, em especial os familiares, com apoio de bancos de desenvolvimento nacionais e internacionais. Seriam US$ 5,5 bilhões em linhas de crédito para agricultores e US$ 1,7 bilhão em fundos sem reembolso para garantir a produção.
O objetivo é permitir que os agricultores possam ter insumos básicos para produzir, como sementes, adubos e fertilizantes, e garantir a próxima safra. Cerca de 6,8 milhões de unidades de produção receberiam um aporte único de US$ 250. A premissa é de que é mais barato subsidiar a produção para o consumo próprio do que a aquisição de alimentos.
Em relatório apresentado nesta semana, as duas instituições informaram que a América Latina verá um retrocesso na luta contra a fome devido à queda de 5,3% na economia regional — a maior em um século. A pobreza é mais frequente no campo por conta do grande contingente de pequenos produtores agrícolas com baixa produtividade, pouca terra e dificuldade de acesso a recursos
Brasil
Sobre o Brasil, país mais populoso da região, com 210 milhões de habitantes, as entidades afirmaram que a pandemia ainda não teve grandes efeitos no sistema alimentar e que é preciso manter o apoio à agricultura familiar, garantir o funcionamento dos programas de compras públicas de pequenos produtores e as políticas de alimentação escolar. A ONU ressaltou que o Brasil se converteu em um modelo para países nesse tipo de política pública. Na região, 10 milhões de crianças têm na alimentação escolar sua principal refeição do dia.
— Nas regiões rurais do Brasil, a agricultura manteve a sua estrutura, mas o grande perdedor dessa pandemia é o negócio rural não agrícola, especialmente ligado a serviços como o turismo, artesanatos, preparação de alimentos e doces, coleta e venda de flores, de frutos do mar, em hotéis, restaurantes — avalia o mexicano Rafael Zavala, representante da FAO no Brasil. — Esse trabalho geralmente é feito por mulheres. O dano econômico a todas essas pessoas é muito alto, comprometendo em muitos lares a maior parte da renda familiar — acrescentou.
Zavala enfatiza que programas de transferência de renda como o Bolsa Família são fundamentais para o bem-estar das populações.
— O Brasil tem uma das melhores experiências de apoio a pequenos produtores e da inclusão da agricultura familiar nos mercados agrícolas, sobretudo na aquisição para a alimentação escolar — No Brasil, sete em cada 10 propriedades rurais pertencem a produtores familiares.
O representante da agência da ONU destaca ainda a importância de fortalecer a governança de organizações, associações e cooperativas locais, melhorando sua resiliência para enfrentar futuras crises. Zavala lembra também que a pandemia reduziu o acesso a alimentos frescos como frutas e legumes devido às restrições impostas a feiras e outros mercados locais.
— A limitação do número de pontos de venda para comprar alimentos favorece a compra de produtos não perecíveis, alguns altamente processados, e tem efeitos negativos na qualidade nutricional da dieta — avaliou.