Em uma das mais surpreendentes campanhas eleitorais em um país europeu na história recente, o comediante que encarna na televisão o personagem de um presidente improvável da Ucrânia repetiu o papel na vida real. Segundo pesquisa de boca de urna do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, Volodimir Zelensky derrotou o presidente Petro Porochenko de forma arrasadora, por 73% a 25% no segundo turno do pleito, disputado neste domingo (21).
– Cidadãos dos países ex-soviéticos, olhem para nós! Tudo é possível! – disse Zelensky após o fim da votação. O resultado final ainda deve demorar alguns dias para sair, já que a apuração na Ucrânia é manual.
Aos 41 anos, Zelensky é ao mesmo tempo uma grande novidade e um enorme ponto de interrogação para o futuro do país. Ainda que não tenha os traços antiglobalistas de outros "outsiders" que chegaram ao poder, como Donald Trump, nos Estados Unidos, ou Jair Bolsonaro, no Brasil, ele divide com eles o fato de ser resultado de uma grande insatisfação popular com a política dita tradicional.
O espírito antipolítico alimentou a campanha, de resto um jogo de esconde-esconde. Zelensky fala pouco, e só na sexta (19) apresentou-se para um debate diante de 60 mil pessoas no Estádio Olímpico de Kiev.
Ele e Porochenko se acusaram mutuamente, mas do vencedor deste domingo foi a melhor frase: "Eu não sou um político. Eu sou só uma pessoa comum que veio para quebrar o sistema. Sou o resultado de seus erros e promessas".
Eu não sou um político. Eu sou só uma pessoa comum que veio para quebrar o sistema. Sou o resultado de seus erros e promessas
VOLODIMIR ZELENSKY
Candidato à presidência da Ucrânia
A Ucrânia tem a especificidade de ser a linha de frente mais aguda no conflito entre a Rússia de Vladimir Putin e o Ocidente. Em 2014, após um instável equilíbrio que alternava forças pró e contra Moscou no poder em Kiev desde o fim da União Soviética que unia os dois países, os russos reagiram à derrubada de um presidente pró-Putin com força militar.
Apoiaram a separação da península historicamente russa da Crimeia e a anexação à Rússia, além de fomentar duas autoproclamadas repúblicas separatistas no leste ucraniano. Regiões de maioria étnica russa, elas são palco de uma guerra civil que matou 13 mil pessoas.
Tudo isso desorganizou a economia ucraniana, que levou um tombo de 17% seu PIB nos dois primeiros anos após o conflito e teve de ser socorrida por dois pacotes do Fundo Monetário Internacional.
Porochenko: rei do chocolate não conseguiu recuperar popularidade
Não foi suficiente para Porochenko recuperar a popularidade que o levou ao cargo logo depois da crise de 2014. O líder de 53 anos, um magnata conhecido como o rei do chocolate, também teve problemas para compor a estrutura de poder ucraniana – e nada indica que Zelensky estará em uma situação melhor quando assumir o cargo.
Após uma revolução anti-Kremlin em 2004, a Rada (Parlamento local) ganhou muitos poderes, com um primeiro-ministro forte e indicando o gabinete com o presidente.
Após ganhar a eleição de 2010, o pró-russo Viktor Ianukovitch tentou reverter o esquema, retirando assim força de poderosos líderes regionais que também comandam setores da economia de forma oligárquica. Esse foi um dos motivos que levaram à sua queda em 2014.
Porochenko manobrava no meio do caminho. O problema para Zelensky, além da total falta de experiência política, é o fato de que ele terá de lidar com um primeiro-ministro alinhado ao antecessor e uma Rada dominada por adversários até as eleições parlamentares de outubro.
Para adicionar tons surreais ao caso, no show de TV em que interpreta o professor de história que vira presidente, Zelensky enfrenta a oposição exatamente do premiê no interstício até a eleição. Na ficção, o rival acaba preso.
Os desafios do novo presidente da Ucrânia
Os desafios do comediante são multifacetados. A economia se arrasta com crescimento abaixo de 2%, e há piques inflacionários por todos os lados – no ano passado, o preço da cebola subiu 115%.
Um dos bodes expiatórios era o pacote de austeridade cobrado pelo FMI pelos empréstimos a Porochenko. Zelensky já se queixou disso, mas é incerto se ele teria como tocar a economia sem o balão de oxigênio externo.
Nas semanas anteriores à vitória, ele vestiu um figurino de "Emmanuel Macron ucraniano" e até visitou o presidente francês no qual quer se espelhar. Mas a realidade é que Macron tinha DNA político claro, enquanto Zelensky parece mais o produto televisivo que encarna.
Zelensky enviou o chefe de campanha a Washington, para rodadas de conversas com lideranças políticas e intelectuais. A ideia foi a de mostrar-se aberto ao Ocidente e, ao mesmo tempo, buscar alguma acomodação com a rival ao leste.
Moscou ainda vai aguardar próximos passos
Para Putin, a vitória de Zelensky parece uma incógnita. Ainda que os serviços secretos de Porochenko tenham tentado impingir uma associação entre Zelensky e o Kremlin por meio de financiadores, a acusação não colou – até porque a eminência parda associada ao novo presidente é um bilionário anti-Rússia, Ihor Kolomoiski.
O Kremlin não quer a Ucrânia associada intimamente ao Ocidente, fazendo parte da União Europeia ou da Otan (aliança militar), por motivos geopolíticos claros: tropas adversárias estariam às suas portas.
Além disso, há a questão da herança cultural compartilhada pelos dois países, originários do antigo Rus de Kiev. Dos tempos imperiais encerrados em 1917 até o fim da União Soviética (1991), era tudo um só país, com línguas muito próximas.
No último censo disponível, de 2001, 17,3% dos habitantes da Ucrânia eram russos étnicos, e a grande maioria fala as duas línguas. Na Crimeia anexada, eram 65%.
Por ora, tudo indica que Putin vai esperar para ver como Zelensky formará a coalizão para que o partido Servo do Povo (que empresta nome e logomarca da agremiação fictícia da TV) dispute a eleição em outubro – pesquisas o colocam à frente com 25% das intenções, mas nada arrasador.
O temor, entre observadores ucranianos, é que Moscou resolva pressionar, distribuindo passaportes russos para os moradores das regiões separatistas. Esse movimento precedeu a separação da Crimeia, e vem sendo especulado há meses.
Por outro lado, economistas russos apontam que seria inviável para a enfraquecida Moscou bancar outra anexação – a Crimeia já consumiu mais de US$ 5 bilhões em investimentos.
Outro ponto de pressão previsível é o fato de que a Rússia inaugura até o fim do ano a duplicação de um gasoduto que permitirá a ela exportar o produto para a Europa sem passar pelos dutos da Ucrânia – deixando, assim, de pagar US$ 3 bilhões anuais em pedágio para Kiev.