A corrupção de funcionários públicos ajuda a explicar a razão do contrabando ajudar a sustentar milhares de pessoas na província argentina de Misiones — conforme estimativa do próprio governo federal argentino. Uma investigação realizada pelo Ministério Público e pela Polícia Federal argentina resultou na prisão de nove pessoas, entre elas Marcos Antonio Duette, chefe do esquadrão da Gendarmeria Nacional em Oberá — cidade argentina situada a 73 quilômetros da fronteira com o Brasil, — e um grande empresário exportador de soja, Santiago Marino.
O fenômeno do contrabando de soja na fronteira gaúcha foi retratado pelo Grupo de Investigação da RBS (GDI), em reportagem que começou na terça-feira (5) e continua nesta quarta-feira (6).
Conforme a Justiça argentina, agentes da Gendarmeria eram subornados para permitir o tráfego de carretas sobrecarregadas (acima do limite de peso) pela Ruta Nacional 14 e a Provincial 2 (junto à costa do Rio Uruguai), sem serem fiscalizadas. Os veículos utilizavam documentos de trafegabilidade de grãos emitidos por empresas de fachada (sem capacidade econômica), como se tivessem pago os impostos IVA e de Ganancia. Eles também forjavam destinos no Interior, quando se dirigiam ao rio, para contrabando.
O processo judicial a respeito, conduzido pelo juiz federal Alejandro Marcos Gallandat Luzuriaga, de Oberá, começou em 2022 e os investigados continuam presos. Eles são processados por contrabando qualificado, associação ilícita, lavagem de dinheiro e falsificação de documentos.
O esquema vigorava nas localidades de Oberá, Panambí, El Soberbio, San Javier, Apóstoles, Colonia Aurora y Mojón Grande, todas próximas à fronteira com o Brasil.
A existência desse processo judicial não significa ausência de fiscalização na Argentina. O volume de apreensões de soja transportada ilegalmente é até maior do que no lado brasileiro da fronteira. A guarnição da Prefectura Naval (Marinha argentina) situada em El Soberbio (em frente à cidade gaúcha de Tiradentes do Sul) contabiliza 1.128 toneladas de grãos apreendidos no ano passado. Os números deste ano não foram fornecidos.
A reportagem não conseguiu contato com as defesas de Duette e Marino.
Contrabandistas brasileiros flagrados têm propriedade junto ao rio
Muitos dos contrabandistas flagrados em sua atividade pelas polícias Militar, Civil e Federal do Brasil são, também, donos de propriedades rurais situadas na costa do Rio Uruguai. Isso explica como conseguem trazer ilegalmente a soja: por meio de portos clandestinos construídos dentro de suas granjas ou sítios.
É o que mostra, por exemplo, o inquérito da Polícia Federal a respeito de um flagrante registrado em 9 de fevereiro deste ano em Tiradentes do Sul, cidade gaúcha que registra o maior número de ocorrências criminais por contrabando desse tipo. Por volta das 10h30min, policiais da Brigada Militar viram barcos carregados chegando pelo Rio Uruguai e surpreenderam dois caminhões num atracadouro clandestino na orla, carregados com soja recém-chegada da Argentina. Um dos veículos estava repleto de sacas de grãos, que eram recolocadas em outro caminhão, por quatro homens.
Ao perceberem a chegada dos PMs, dois homens fugiram e outros dois foram presos. Os caminhões estavam com 11 toneladas de soja. Ao ser questionada, a dupla disse nada saber sobre o grão e os caminhões. Um deles declarou residir na localidade de Epaminondas, em Tiradentes do Sul e ser criador de gado. Os policiais pesquisaram e descobriram que a propriedade rural onde foi flagrado o contrabando pertence ao pai dele.
Já o outro flagrado falou que é morador de Linha Lajeado Caçador, em Crissiumal — outro município na fronteira com a Argentina. A Receita Federal estimou que os dois veículos de carga tinham deixado de pagar R$ 9,2 mil em tributos devidos.
Os dois foram autuados em flagrante por contrabando e ficaram presos alguns dias no Presídio Estadual de Três Passos, sendo soltos depois para responder pelo crime em liberdade. O processo corre na Justiça Federal em Santo Ângelo.
E quanto ganham os contrabandistas para fazer a travessia? Uma pista surge do flagrante feito em setembro de 2022 pela BM na localidade de Barra do Turvo, interior de Esperança do Sul. Os PMs realizavam patrulha ambiental quando surpreenderam duas barcaças de madeira, carregadas com sacas e puxadas por um bote de alumínio, vindo da Argentina pelo Rio Uruguai e ingressando num afluente menor, o Rio Turvo. Abordaram os suspeitos, que transportavam sacas de soja e fardos de fumo. Quando viram os policiais, os tripulantes dos barcos tentaram retornar. Sem sucesso, pois seu motor era fraco (15 HPs) para tanta tonelagem de carga e a velocidade que conseguiam atingir era baixa.
Os contrabandistas foram presos em flagrante, com 1,3 tonelada de fumo e 7,9 toneladas de soja trazidas ilegalmente ao Brasil. Os dois flagrados estavam sem documentos. Os PMs acreditam que os suspeitos sejam moradores de El Soberbio — do outro lado do Rio Uruguai. Os dois admitiram que era a segunda viagem que estavam realizando.
Os suspeitos afirmaram que apenas realizam o transporte, sendo que a negociação de compra e venda da mercadoria é feita por outras pessoas, cujos nomes não revelaram. Cada um deles receberia R$ 5 mil por carga que completasse uma carreta.
A carga foi avaliada pela Receita Federal em R$ 31,2 mil. Curiosamente, os PMs apreenderam com um dos rapazes uma nota fiscal, no valor de R$ 30,3 mil, expedida por uma ferragem situada em Tiradentes do Sul. Ela se referia à compra de bandejas, substrato e lona.
Os dois flagrados foram indiciados por contrabando, mas pagaram fiança de R$ 12 mil, cada um, e com isso ganharam direito a responder ao processo em liberdade. No celular de um deles, foram encontradas fotos de galpões abarrotados de grãos, fumo e também de defensivo agrícola Paraquat (proibido no Brasil).
Contrabando ou descaminho?
A introdução ilegal de soja argentina no mercado brasileiro é crime de contrabando ou descaminho? A reportagem checou com Pedro Bellinaso, auditor da Receita Federal que chefia a repressão a esses crimes na fronteira noroeste do Rio Grande do Sul, e com Farnei Franco Siqueira, delegado da PF naquela região. Eles explicam que os dois delitos têm diferenças:
- Descaminho — importar ilegalmente uma mercadoria sem pagar seus tributos.
- Contrabando — importar ilegalmente uma mercadoria que precisa de autorização especial para ingressar no país e que também pode causar dano à sociedade.
A Receita Federal considera que, no caso da soja, ocorre contrabando, porque há risco fitossanitário (de doenças na produção agrícola), já que organismos causadores de doenças podem ingressar no Brasil dessa forma.
A outra diferença está na punição. Para o descaminho, o Código Penal prevê pena de reclusão, de um a quatro anos. Para o contrabando, a pena é de dois a cinco anos de reclusão.
Mais um detalhe: a pena pode ser aplicada em dobro se o contrabando é feito por via aérea, marítima ou fluvial (como é o caso da soja argentina).
Entre em contato com o GDI
Tem uma história que devemos ouvir ou sabe sobre alguma irregularidade? Entre em contato pelo e-mail gdi@gruporbs.com.br ou pelo WhatsApp (51) 99914-8529.
O que é preciso enviar?
Por favor, seja o mais específico possível. O que aconteceu e por que você acha que devemos acompanhar essa história? Documentos, áudios, vídeos, imagens e outras evidências podem ser enviados. A sua identidade não será publicada nas reportagens.
Qual é o foco das reportagens do GDI?
O GDI se dedica principalmente, mas não apenas, a verificar uso de dinheiro público, veracidade de declarações de autoridades e investigações em geral.