Duas entidades especializadas em terceirizar serviços de saúde e educação, investigadas pela Polícia Federal (PF) em uma operação que resultou em 15 prisões temporárias, movimentaram mais de R$ 200 milhões em quatro anos. É o que constataram auditores dos tribunais de Contas do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
Os dados foram usados pela PF para conseguir que 11 dos 15 presos da Operação Camilo — deflagrada semana passada, contra fraudes no setor de saúde — tenham sua condição transformada em prisão preventiva, reservada a casos graves e na qual não há prazo delimitado para libertação dos suspeitos. As prisões preventivas foram decretadas nesta sexta-feira (5) pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Quatro dos 15 presos serão libertados.
As prisões foram ordenadas porque há suspeita de desvios milionários. Mais de R$ 200 milhões passaram pelas contas de duas organizações sociais civis (OSC, que terceirizam serviços das prefeituras): a Associação Brasileira do Bem-Estar Social, Saúde e Inclusão (Abrassi) e do Instituto de Educação Vida e Saúde (Isev), entre os anos de 2015 e 2019.
A Operação Camilo foi mais focada na cidade de Rio Pardo, onde há suspeita de desvio de R$ 15 milhões em contratos entre essas instituições e a prefeitura. Inclusive o prefeito rio-pardense, Rafael Reis Barros (PSDB), está entre os presos pela PF.
Já o Grupo de Investigação da RBS (GDI) rastreou as ligações de parentesco, amizade e as irregularidades que pairam em contratos dessas entidades em 16 municípios gaúchos e catarinenses. O material foi publicado em reportagem de GaúchaZH nesta sexta-feira (5).
A análise dos contratos dessas OSC, feita pelo GDI, mostra um padrão: após um início de trabalho promissor, as entidades começam a acumular queixas de má prestação de serviços e de descumprimento de contratos nas áreas de saúde e educação. Isso porque, em grande parte dos casos, as empresas contratadas pelas OSC não têm conhecimento técnico para executar as tarefas demandadas.
O critério, muitas vezes, é amizade. Em vários municípios, um mesmo grupo de pessoas, com várias empresas abertas, foi contratado por eles mesmos para prestação de trabalhos que, em alguns casos, nem sequer foram concluídos.
O GDI checou também queixas contra uma terceira entidade, a Associação São Bento, que ainda não teve a movimentação financeira analisada pela PF. A reportagem constatou que as três entidades tiveram alguns diretores, contadores e telefones em comum. A suspeita dos policiais que investigam o caso é que tenham sido montadas, em parte, para realizar desvios de verbas públicas.
As quantias movimentadas são vultosas. O Isev, por exemplo, só no Rio Grande do Sul recebeu entre 2015 e 2019 cerca de R$ 124 milhões para administrar a saúde pública de vários municípios. A partir dos escândalos em que o Isev se envolveu, os valores repassados ao instituto foram diminuindo e sendo transferidos à Abrassi (e a outras organizações sociais), que começou a atuar com força só em 2018.
A investigação da PF identificou 22 filiais do Isev no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Em grande parte há notícias de irregularidades, falta de pagamentos, de investimento, em itens básicos de saúde. O mesmo acontece em relação à Abrassi.
Um dos motivos da prisão do prefeito de Rio Pardo, Rafael Barros, é que a PF comprovou que ele teria autorizado burla num processo de limpeza nas ruas da cidade. Escutas autorizadas pela Justiça comprovam que a sanitização ordenada pelo prefeito deveria ter visibilidade e ser “estendida durante o maior tempo possível – mesmo que seja necessário fazer a limpeza só com água”. Os policiais acreditam que isso tinha propósito eleitoreiro.
O inquérito policial constatou também que a Abrassi, contratada para administrar a saúde em Rio Pardo, recebeu 14 aditivos no acordo financeiro inicial, o que é considerado forte indício de irregularidade.
A PF solicitou e conseguiu também, da Justiça, apreensão de R$ 400 mil em espécie — mantidos por parte dos 15 presos — e 31 veículos. Somados aos R$ 3,5 milhões congelados nas contas bancárias dos suspeitos, a estimativa é de que estejam imobilizados R$ 5 milhões. Esses valores poderão retornar à União e ao Estado, havendo a condenação judicial. Esses R$ 5 milhões representam um terço do que os policiais consideram que já está comprovado em termos de desvios nos contratos de Rio Pardo.
CONTRAPONTOS
O que dizem os advogados dos dirigentes da Abrassi, do Isev e do prefeito de Rio Pardo, Rafael Barros:
O advogado do prefeito e também da direção do Isev, Rodrigo Grecellé, diz que não pode comentar o assunto enquanto não tiver acesso completo aos autos. Os seus clientes ficaram calados no interrogatório da PF.
O advogado de dois ex-gestores da Abrassi, Rafael Ariza, também considera que só a liberação completa dos autos do inquérito por parte da Justiça vai propiciar defesa correta das entidades investigadas.
Quem são os 11 presos na ação da PF que tiveram as prisões preventivas decretadas pela Justiça Federal:
1 - Michel Becker. Preso em Florianópolis. Empresário, é um dos sócios de uma empresa de alimentação de Santa Catarina que prestava serviços para o Hospital Regional do Vale do Rio Pardo. A instituição era uma das administradas pela Abrassi em Rio Pardo.
2 - Juarez dos Santos Ramos. Ex-presidente do Instituto de Saúde e Educação Vida (Isev), uma espécie de administradora da Abrassi. O Isev foi responsável, entre outros, pela administração do Hospital de Taquara e de Dois Irmãos. Em ambos, foi o instituto foi alvo de denúncia do Ministério Público por desvios milionários.
3 - Milton Schmitt Coelho. Procurador-geral do município de Rio Pardo, antes trabalhou como advogado do prefeito de Rio Pardo, Rafael Reis Barros.
4 - Rafael Reis Barros. Prefeito de Rio Pardo. Além dos desvios de recursos, PF e MP dizem que ele ordenou falsa desinfecção de ruas da cidade contra o coronavírus. No lugar de desinfetante, ia somente água.
5 - Julio Cesar da Silva. Preso em Florianópolis. Empresário. Desde 2017 ocupa um cargo em comissão na Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis. Sua construtora tem contratos com a Abrassi.
6 - Fabiano Pereira Voltz. Atual superintendente da Abrassi. Trabalhou por 10 anos como diretor do Instituto Saúde e Educação Vida. Aparece em documentos como administrador de outras empresas.
7 - Carlos Alberto Serba Varreira. Secretário-geral do partido Solidariedade no Estado. Ele é investigado por ter sido gestor da Associação Brasileira de Assistência Social, Saúde e Inclusão (Abrassi), principal alvo da operação.
8 - Renato Carlos Walter. Advogado, foi preso em Porto Alegre. É um dos sócios da Abrassi. Também tem participação em outras duas empresas investigadas por terem sido subcontratadas. (Tiers e GLP)
9 - Lucia Bueno Manieri. Foi vice-presidente da Associação São Bento. Investigação aponta que empresa é uma das laranja do Isev. Em Florianópolis, associação foi responsável por gestão de creches e, após denúncia, teve contrato rompido.
10 - Ricardo Roberson Riveiro. Atual presidente da Abrassi. É enfermeiro, e já foi presidente do Conselho Regional de Enfermagem e agora é investigado por comprar equipamentos vencidos para profissionais de saúde.
11 - Edemar João Tomazeli. Preso em São Paulo, aparece em documentos sócio de uma empresa de propaganda e marketing. No entanto, investigação aponta que ele é o fundador da Abrassi. Apuração aponta que ele abre as organizações sociais e as repassa terceiros. Com isso, ganharia uma comissão.