Uma faceta da ação das facções, essa já bem conhecida pela população, é o controle de territórios, com a definição sobre quem pode ou não transitar em determinadas regiões. Por conta da violência e dos riscos decorrentes dessas disputas, até mesmo o poder público tem que se adequar.
No extremo sul de Porto Alegre, os reflexos da disputa entre criminosos criaram uma situação inédita: existe um movimento de promotores, defensores públicos e juízes para que o Foro Regional da Restinga não funcione mais no bairro por conta da insegurança. O argumento é de que todos que precisam frequentar as dependências do foro – seja como trabalhadores, seja como parte em processos – correm riscos.
O movimento, por enquanto, está vencido. Há decisão da presidência do Tribunal de Justiça (TJ) para que as atividades retornem ao prédio assim que for concluída uma reforma iniciada em 2016.
Com isso, Porto Alegre pode se tornar uma das poucas cidades do Brasil a ter uma companhia de Polícia Militar instalada dentro de um prédio do Poder Judiciário. Isto porque o funcionamento de um posto avançado do 21º BPM no Foro foi uma das alternativas encontradas para tentar amenizar o mal-estar causado pelo debate e pelo medo.
A discussão sobre o fórum – que já tem vidros blindados – não poder mais funcionar em uma área conflagrada por facções começou com um pedido de promotores e defensores públicos que atuavam na Restinga, em agosto de 2016. Com base nisso, juízes firmaram documento dirigido à Comissão de Segurança do TJ, em novembro daquele ano, pedindo avaliação sobre a localização do fórum antigo e também do novo, que era previsto para ser erguido na mesma avenida, a João Antônio da Silveira.
"O prédio antigo está em posição estratégica para o crime organizado, pois é inserido em seu enclave e sujeito às pressões externas e monitoramento permanente (por parte de criminosos)", diz trecho do documento.
Sobre a localização do imóvel a ser construído, os juízes escreveram: "o aumento colossal da criminalidade na Capital fez com que a área tomada pelo comando do tráfico fosse expandida, engolindo áreas pobres adjacentes, afastando a influência do Poder Público e instaurando verdadeiras zonas paraestatais de poder. Foi o que ocorreu com a área do terreno do novo fórum".
O prédio em questão é um local de grande vulnerabilidade, pois trata-se de uma zona de confluência e conflito entre três facções.
DOCUMENTO DO 21º BPM
sobre o Foro Regional da Restinga
Em abril do ano passado, por seis votos a dois, a Comissão de Segurança do TJ opinou pelo não-retorno das atividades para o prédio na Restinga. Em seu voto, o relator do expediente registrou:
"Por mais que se invista em equipamento e pessoal para a garantia da ordem e integridade física dos presentes no âmbito interno do atual Foro Regional, o seu entorno ainda seguirá como grande risco seja na chegada ou saída de suas dependências, visto que se trata de zona conflagrada pelo tráfico de entorpecentes".
Outro integrante da comissão também destacou o problema da violência:
"...os fatos que foram trazidos como fundamento do pedido são públicos, notórios, estão cumpridamente demonstrados, revelam uma verdadeira situação de tragédia urbana na região vizinha do foro. Flagrantemente, o foro, naquela região, não tem condições de receber pessoas para ali trabalhar, assim como não tem condições de abrir as portas para receber os jurisdicionados".
Mas no final do ano passado, a presidência TJ decidiu pelo retorno das atividades ao bairro do extremo sul da Capital. Promotores que atuam na Restinga questionaram, então, a Brigada Militar sobre as condições de segurança na região e o funcionamento de uma companhia no fórum. A resposta, de fevereiro deste ano, reforçou o que faz da Restinga um ponto diferenciado em relação à violência promovida por facções.
"O prédio em questão é um local de grande vulnerabilidade, pois trata-se de uma zona de confluência e conflito entre três facções", diz trecho do documento do 21º BPM.
E sobre a presença de PMs dentro do prédio, o comando do batalhão à época ponderou não ser medida suficiente:
"Devido a vulnerabilidade do entorno e a redução de efetivo presente em uma companhia destacada não será uma completa solução para os frequentadores, podendo, inclusive, inibir a vinda de pessoas que gostariam de contar com os serviços do foro, como, por exemplo, o serviço prestado pela Defensoria Pública".
No documento, o comando da época chegou a sugerir que toda a estrutura do 21º BPM fosse transferida para a região do Foro para, aí sim, garantir a segurança necessária no local e arredores.
Em abril, um grupo se mobilizou para recolher 150 assinaturas de advogados que atuam em processos no fórum da Restinga, reforçando a contrariedade com o retorno do trabalho ao bairro. O documento foi entregue à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
As obras no local, iniciadas em 2016 e que deviam ter sido concluídas ano passado, ainda seguem. O atraso ocorreu por conta da remoção da vara criminal (todas passarão a funcionar no Fórum Central) e das adequações necessárias para instalar a BM no prédio.
A previsão do TJ é de que as atividades sejam retomadas na Restinga em outubro. Enquanto isso, o trabalho do fórum da Restinga está sendo realizado no bairro Tristeza.
Segundo dados da Justiça, desde que o atendimento ocorre no outro bairro, o número de audiências canceladas por ausência de uma parte caiu. Na Restinga, as pessoas temiam ir depor em processos, mesmo nos cíveis. Muitas relataram ter sofrido ameaças de membros de facções.
Integrantes do movimento contrário ao retorno do Foro Regional ao bairro Restinga ainda analisam se há formas de recorrer da decisão do TJ.
Transferência de Varas Criminais
A questão da insegurança também está presente em outra medida aprovada pela Justiça: a transferência de todas as varas criminais regionais para o Fórum Central de Porto Alegre até o final do ano. O assunto vinha sendo debatido há anos, e houve decisão do Conselho da Magistratura no fim de 2017.
Para a relatora do expediente no conselho, desembargadora Iris Helena Medeiros Nogueira, além de garantir o equilíbrio da carga de trabalho entre juízes criminais do fórum central e dos regionais, a concentração das varas criminais também é solução "para questão da segurança, haja vista o aumento da vulnerabilidade e exposição dos magistrados e servidores que atuam nos Foros Regionais". A Justiça também sustenta que a medida vai facilitar o trabalho da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), que faz o transporte de presos para audiências.
Conforme o TJ, o prédio do fórum central, que passa por reforma, "terá uma estrutura que favorecerá tanto a segurança dos réus quanto dos servidores e usuários em dias de audiências, com entrada exclusiva para veículos da Susepe, áreas de circulação privativa e elevadores exclusivos para réus presos, sem contato com o público. Ainda, a centralização das varas criminais em um único prédio favorecerá a logística e a segurança no transporte dos presos pela Susepe".
Contrapontos
O que diz o presidente do Conselho de Comunicação do TJ, desembargador Túlio Martins:
Já foi decidido que o fórum retornará para a Restinga e a decisão será cumprida.
O que diz a presidente da Ajuris, juíza Vera Lúcia Deboni:
A posição da Ajuris é de extrema preocupação. Primeiro com os espaços do Estado, que estão se perdendo nesses locais, do estado-saúde, estado-escola, e agora estado-Justiça. Existe realmente risco grande relatado pelos colegas, o Tribunal já tomou a decisão que eles voltarão, e isso nos preocupa enquanto classe, de que o Tribunal tenha meios para dar garantia de segurança não só para os juízes e servidores, mas para todos os usuários.
O que diz o defensor público-geral do Estado, Cristiano Vieira Heerdt:
A Defensoria Pública seguirá participando das audiências onde o Fórum funcionar. Enquanto não há definição do Poder Judiciário, a Defensoria segue atendendo no Fórum da Tristeza.
O que diz o procurador-geral de Justiça, Fabiano Dallazen:
O Ministério Público estará onde estiver o Fórum da Restinga.
O que diz o presidente da OAB, Ricardo Breier:
Estamos analisando dados do procedimento administrativo, do Tribunal de Justiça, e as proposições dos advogados para depois nos manifestarmos.