Durante pelo menos três anos, um pelotão composto por 13 policiais militares formou um bando, apelidado por eles mesmos como “A Firma”, dedicado a prestar serviços criminais para facções de Porto Alegre. O grupo é ligado ao 21º Batalhão de Polícia Militar (BPM), com sede no bairro Restinga e atuação em todo o extremo sul da capital gaúcha. Eles se dedicavam a revenda de armas e drogas para traficantes, além de repassarem informações confidenciais – informavam os quadrilheiros sobre eventuais planos de outros policiais para capturá-los.
Investigação do Ministério Público (MP) e da PM2 (serviço secreto da Brigada Militar) concluiu que "A Firma" era chefiada por três PMs – um deles, sargento – e pelo proprietário de uma loja que encobria um ponto de tráfico de drogas na Restinga. As negociações do bando eram feitas com pelo menos nove civis, ligados a três diferentes quadrilhas (a principal delas é os Bala na Cara e as outras duas, grupos da Restinga).
O sargento era responsável pela distribuição dos integrantes do grupo de PMs em escalas de serviço de policiamento para atuação de acordo os interesses da "Firma", bem como a divisão dos lucros com os outros líderes da quadrilha fardada. A maior parte dos lucros era obtida com revenda de produtos apreendidos durante o policiamento e desviadas para os integrantes do grupo.
Os policiais também recebiam dinheiro dos traficantes para alertá-los quanto a possíveis prisões ou prejuízos financeiros. Era uma forma de proteção aos criminosos.
Isso acontecia porque os PMs tinham acesso a informações privilegiadas em razão dos cargos que ocupavam. Até por isso, eles cobravam valores mensais para evitar o policiamento nos pontos de tráfico. E mais: realizavam prisões de rivais dos grupos de traficantes com os quais estavam vinculados.
O proprietário da loja era o ponto de contato e intermediação com o maior dos bandos criminosos. Interceptações e apreensões de telefones mostraram diálogos entre os PMs e traficantes, nos quais são flagradas negociações de drogas e armas. Em alguns casos é providenciado o não-registro de ocorrências policiais – prisões que, ao final das contas, não têm valor legal.
Em contrapartida, os criminosos informavam aos PMs pontos de drogas pertencentes aos seus rivais, para que os policiais atuassem. A maior parte do serviço era noturna, entre 18h e 6h do dia seguinte.
Um dos casos mais flagrantes de corrupção aconteceu em 2015. O pelotão vinculado ao 21º BPM foi designado para auxiliar na apreensão de uma tonelada de drogas realizada pela Polícia Federal. Os PMs acabaram encarregados de guardar os entorpecentes.
Sem que os federais percebessem, os policiais militares desviaram 180 quilos de maconha. De imediato, via WhatsApp, ofereceram o produto para revenda por parte de traficantes amigos, que aceitaram a oferta.
Com armamento ocorria o mesmo. Entre as armas apreendidas e comercializadas pela quadrilha de PMs estão revólveres, pistolas, fuzis e munições de calibres variados, a preços que variavam de R$ 1,5 mil a R$ 28 mil. Tudo está documentado em mensagens trocadas pelos policiais.
Em diálogos captados com autorização judicial, as autoridades também flagraram queixas de um PM pelo fato de o chefe de uma quadrilha não o ter procurado:
"(...) Continua reclamando para (nome de um criminoso) que o patrão da boca ainda não lhe procurou e apresenta uma tática comum na associação dos policiais militares, qual seja, ameaça que está na posse de 15 pedras de crack e 10 porções de maconha dos vendedores do tráfico da própria Vila Teletubbies para 'dar uma cana bem suave'. Criminoso, então, pede para que o policial militar prenda integrantes novos ou 'quebre' alguém para que o patrão volte a conversar com o policial", registra trecho da denúncia.
Denúncia do MP
O Ministério Público também informa na denúncia que "A Firma" planejou diversos roubos a sítios em Viamão e no extremo sul de Porto Alegre. Os assaltos, que incluíam manutenção de pessoas na condição de reféns, eram feitos por criminosos comuns, orientados pelos PMs. Os produtos obtidos nos roubos eram vendidos pelo dono do mercado que funcionava como ponto de drogas na Restinga.
A investigação aponta ainda que um dos civis da "Firma" é proprietário de uma oficina mecânica e responsável pelo desmanche dos automóveis roubados pelo grupo. Numa ocasião, o bando apreendeu o automóvel de uma facção, que resultou em R$ 30 mil, divididos entre oito criminosos a título de "gratificação de final de ano".
Entre os 13 militares investigados, 11 chegaram a ser presos preventivamente ao longo do processo. Todos foram denunciados pelo MP por crimes como associação criminosa, tráfico, corrupção e receptação.
Depois do depoimento das testemunhas, os acusados ganharam liberdade, tendo a prisão substituída por medidas cautelares como suspensão da função, proibição do porte de arma e entrega das armas, entre outras. O MP recorreu ao Tribunal de Justiça Militar, pedindo a manutenção da prisão preventiva para três dos investigados, mas o recurso não foi julgado.
A parte do processo que envolve os PMs segue tramitando na Justiça Militar. A investigação em relação aos civis está na Justiça comum, na Restinga.
Vila Bom Jesus
Na Vila Bom Jesus, uma aliança de policiais militares (PMs) com integrantes da facção Bala na Cara era permeada por deboche contra colegas de farda que tentavam agir corretamente. Em junho, a Corregedoria-Geral da Brigada Militar e o MP deflagraram a Operação Cherrin, quando 10 PMs foram presos de um total de 25 sob suspeita de trabalhar favorecendo criminosos.
Depois de um ano de investigação, as autoridades encontraram indícios de que policiais se apropriavam de armas e de drogas durante ocorrências, comercializavam armamento, traficavam entorpecentes, vendiam informações privilegiadas e extorquiam traficantes, entre outros delitos. Até a possibilidade de envolvimento em homicídios por encomenda está sob apuração.
O grupo de PMs suspeito se dividia no que a investigação passou a chamar de "células autônomas". A atuação era compartimentada, cada um tinha tarefas diferentes e atuava por territórios. Conforme autoridades, eles davam proteção aos negócios da facção e forneciam armas.
Proteger significava ações omissivas em determinados momentos, como deixar de agir da maneira que deveria ou até mesmo atuar de forma mais ostensiva em relação a adversários do grupo. Outra situação apurada foi o repasse de informações privilegiadas sobre operações policiais planejadas contra o grupo criminoso ou sobre investigações em andamento. Em contrapartida pelos serviços prestados, os PMs passaram a ter acréscimo patrimonial, bens incompatíveis com a renda.
Além dos 10 PMs, foram presos na operação oito pessoas relacionadas à facção e apreendidos R$ 240 mil, 126 celulares, 10 armas e 1,4 mil munições de diversos calibres. A investigação prossegue aguardando, principalmente, o resultado de perícias nos mais de 100 telefones apreendidos.