Que o programa Minha Casa Minha Vida mudou o cenário habitacional do país, ninguém discute. Em 2013, ele foi responsável por um terço (32,1%) do total das construções de moradias do Brasil. E representa a única chance que famílias com pouco dinheiro têm de alcançar a casa própria.
O dilema é que esse projeto, o principal voltado à moradia nas últimas décadas, tem sido alvo de fraudes variadas, desde a construção dos prédios à escolha de quem será beneficiado, passando por concorrências viciadas e negociações irregulares dos imóveis quando ainda estão sendo pagos pelos donos. É o que constatou esta reportagem, em 40 dias de investigações.
Entre os 130 mil imóveis entregues pelo Minha Casa Minha Vida no Rio Grande do Sul, é rotina deparar com mau acabamento da construção (infiltrações, inundações, rachaduras). Há queixas desse tipo em 11 condomínios em Canoas, dois em Porto Alegre, um em Sapucaia do Sul, um em Cachoeirinha, dois em Novo Hamburgo e um em São Leopoldo. Em alguns casos, os moradores estão desesperados, porque as construtoras faliram ou não têm recursos para obras emergenciais. É comum também o atraso na entrega dos apartamentos.
Mas esses são problemas de quem já está com o imóvel. As ilegalidades começam ainda antes do primeiro tijolo ser assentado. Existe pelo menos um caso denunciado no Rio Grande do Sul - e vários no país - de fraude em licitações do Minha Casa Minha Vida. Promotores asseguram ter flagrado empreiteiros acertando resultados de concorrência para ver quem seria escolhido para construir um condomínio. Há também suspeitas de fraude no sorteio de quem será contemplado com os imóveis.
Por fim, venda e aluguel ilegais proliferam em todo o RS e em Santa Catarina, assim como invasões de imóveis. ZH conseguiu comprovar que mutuários comercializam residências, de forma irregular, em Canoas e Cruz Alta. Flagrou também casas ocupadas por invasores, sem que o poder público tenha se mobilizado para retirá-los. Quem perde é o governo, que financiou residências a baixo custo e as vê serem vendidas por quatro vezes o preço original ou mais, desvirtuando o objetivo do programa - ajudar os pobres.
Qual o tamanho dessas irregularidades? Se forem levadas em conta estatísticas oficiais, pequeno. Balanço feito em 2014 pelos ministérios das Cidades (responsável pelo programa) e da Justiça contabiliza 15.720 investigações ao longo de cinco anos de execução do programa (de 2009 a 2014). Do total, 8.964 (57%) foram julgadas improcedentes, após investigação. Em 1.561 casos, as unidades ocupadas ilegalmente foram retomadas e devolvidas aos beneficiários originais e 5.195 denúncias continuam em apuração. As queixas representam 0,95% do programa, que já entregou 1,6 milhão de moradias até 2014.
Condomínio Planalto Canoense, no Bairro Olaria, em Canoas. Neste conjunto existem apartamentos do Minha Casa Minha Vida à venda.
Foto Fernando Gomes
Muitas queixas e poucos imóveis retomados
Acontece que as estatísticas nem sempre espelham a realidade e, muitas vezes, estão desatualizadas. A Caixa Econômica Federal informa que já foram entregues no RS mais de 39 mil unidades habitacionais na faixa 1 para famílias com renda de até R$ 1,6 mil - e cuja venda é proibida, antes da quitação do financiamento. Desse total, apenas 112 sofrem ações de reintegração de posse na Justiça (despejo do morador, por irregularidade), sendo que outros 45 já foram retomados, também por ilegalidades constatadas.
O curioso é que apenas em Cruz Alta, uma das cidades visitadas por ZH, a prefeitura recebeu queixa de 82 casas do programa em situação irregular. Isso significa mais que o total de imóveis já retomados pela Caixa Federal até hoje em todo o Estado no programa Minha Casa Minha Vida.
Outras instâncias fiscalizatórias mostram que o número de irregularidades pode ser bem maior que o anunciado pelo Ministério das Cidades. Auditoria especial feita pela Controladoria-Geral da União (CGU, órgão fiscalizador do governo federal) analisou especificamente municípios com menos de 50 mil habitantes.
O relatório, divulgado em dezembro passado, traz algumas constatações:
1) atrasos nas obras: um em cada três imóveis com contrato assinado entre 2009 e 2010 (32%) ainda não foi finalizado. São 1 milhão de imóveis nesse período. De 2012 até abril de 2014, foram contratadas mais 1,3 milhão de unidades e mais de 2,5 milhões de contratos assinados, mas, até dezembro, 83% das obras não haviam sido iniciadas.
2) qualidade deficiente de imóveis entregues: grande ocorrência de defeitos construtivos e de não entrega de serviços contratados e pagos (reboco, pintura, vidros, entre outros).
3) grande ocorrência de obras em terrenos sem regularidade fundiária e imóveis entregues também sem a devida regularização.
4) obras entregues sem a infraestrutura mínima, principalmente relativa a esgotamento sanitário.
5) trabalho informal na maioria das obras visitadas: trabalhadores sem registro e sem equipamentos de proteção individual.
6) risco patrimonial do governo federal ao antecipar recursos aos bancos e agentes financeiros sem qualquer garantia: alguns bancos quebraram.
7) ganhos financeiros indevidos de bancos e agentes financeiros com os recursos antecipados e não repassados para as construtoras ("floating").