Uma mesa com livros que retratam a história do Rio Grande do Sul e do folclore gaúcho, bem como do Museu de Percurso do Negro e das vivências da cultura negra, dava o tom da atividade realizada no piquete O Mocambo, no Acampamento Farroupilha, nesta segunda-feira (12). No embalo do tema da Revolução de 1923, que tem seu centenário celebrado neste ano, o piquete originário da Associação do Quilombo da Mocambo, no Centro Histórico, em Porto Alegre, organizou uma apresentação sobre a participação – frequentemente ignorada – dos negros no cenário das guerras no RS.
Na esteira da reminiscência da história e ancestralidade do povo negro, o Museu de Percurso do Negro em Porto Alegre, a céu aberto, foi citado. Uma de suas obras, localizada na Praça Brigadeiro Sampaio, no Centro Histórico, é justamente um tambor – símbolo cultural importante que também se fez presente na apresentação do piquete. O instrumento é um dos que adornam, junto a berimbaus e porongos, o espaço – marcado pela simplicidade e pela memória.
Cássio Tambor, 45 anos, artesão e educador social, produz o instrumento que leva como sobrenome e deu uma demonstração do seu potencial de comunicação. O artesão, que se criou em meio à religião umbanda, realiza o resgate cultural e de ancestralidade por meio do ofício. Assim, transforma restos de madeira em uma obra de arte, com peças únicas, buscando mostrar que a natureza pode se manifestar de outra forma.
— Faço o resgate dos galhos derrubados em nome do progresso e a reciclagem, um resgate ecológico e ambiental, buscando o sentimento da árvore, que era um ser vivo, e está passando por um momento de simbiose entre a vida e a morte — contou.
Desta maneira, com o instrumento de percussão, Cássio resgata o que define como "o primeiro meio de comunicação do mundo".
— O homem, na sua evolução, queria a comunicação com seus deuses. Depois, virou comunicação de homem com homem, tribo com tribo. Chegou determinada época que cada tribo tinha seu próprio tambor e toques, para comunicar em guerras, em comemorações, em rituais de nascimento ou de morte — explicou.
Esquecemos, neste dia a dia tão atropelado, que só existe uma humanidade, que é a que tem dentro de nós, e ela não tem cor
MARIA ELAINE ESPÍNDOLA
Patroa do piquete O Mocambo
As tribos utilizavam diferentes toques de som, como Ijexá, Nagô e Kambina. Ainda que essa cultura tenha perdurado milhares de anos, hoje os toques são mais originários e cultuados em religiões.
— Mas a gente vem resistindo até hoje na luta — salientou.
Cada tambor produzido pelo artesão tem um som único. As pessoas se adaptam à peça, que vai "comunicar com elas", de acordo com o tipo de som que precisam ou querem.
Ao final da apresentação, Cássio Tambor convidou o público que acompanhava a atividade – incluindo um grupo de estudantes do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – a tocar os instrumentos que produziu.
A presença do negro nas guerras
Mestra griô (guardiã da memória de sua etnia) e patroa do piquete que acampou pela primeira vez em 2004, Maria Elaine Espíndola, 77 anos, ressaltou que pensar nos antepassados remete à guerra, mas a batalha começou muito antes, ao atravessar o mar em navios de escravos. Além disso, enfatizou que, nessas lutas, as lideranças estavam em busca de outro projeto, no qual o povo negro não estava incluído.
— Quem escreve a história é o vencedor, mas aquele que perdeu também tem sua verdade. E ela é trazida do longínquo mar, com suor e trabalho — contou.
Para ela, os negros poderiam ter contribuído muito mais e ajudado a melhorar o Estado, mas não tiveram essa oportunidade. Agora, no lugar que ocupa, a mestra griô quer contar a história – não contada – de seu povo. E ela tem a satisfação de dizer que a comunidade realiza esse resgate por meio da educação, da fala de escritores e, principalmente, da força das mulheres.
— Estamos aqui, fazemos parte da sociedade, queremos ser ouvidos e incluídos — afirmou Maria Elaine, que é também artista plástica e professora de braile.
Capataz do Piquete do Mocambo, Nilse Rodrigues, 61, reforça que a comunidade quer estar presente. Na exposição, ela mostrou a pintura Pelo Rio Grande para o Brasil, produzida por Helios Seelinger, em 1925, que retrata homens, crianças, mulheres e a juventude do Rio Grande do Sul em batalha. Porém, não há a presença de figuras negras.
— Queremos colocar que nós fizemos parte dessas guerras todas, a presença do negro sempre esteve em tudo. Estivemos sempre e estamos presentes. Sempre lutando, com a certeza de que temos de lutar, permanecer, para que a nossa presença continue persistindo e possamos, enfim, também ser incorporados e abraçados nessa sociedade que vivemos — destacou.
Além disso, Nilse lembrou do charque, patrimônio dos gaúchos apreciado até hoje, e do envolvimento dos negros no movimento das charqueadas, também relacionadas às guerras.
A exposição contou ainda com uma récita do poema Sou, de Oliveira Silveira, em coro, por parte do público, ao som de um acordeom. O músico, em seguida, tocou a clássica canção Guri, remetendo à educação e à territorialidade – relacionada, por sua vez, à contínua luta para que os quilombos permaneçam em seu local de origem, respeitando a ancestralidade e a busca por igualdade.
— Muitas coisas deixaram de acontecer por causa da guerra, sonhos interrompidos. Esquecemos, neste dia a dia tão atropelado, que só existe uma humanidade, que é a que tem dentro de nós, e ela não tem cor — acrescentou Maria Elaine.
Aula diferente
A professora da UFRGS, Carla Meinerz apontou que levou sua turma na apresentação com o objetivo de promover uma aula de História diferenciada, a partir dos saberes e conhecimentos da população negra. As atividades promovidas pelo quilombo sempre trazem aprendizado, segundo a professora.
— A gente tem uma relação bem forte da UFRGS com o Quilombo da Mocambo já há bastante tempo, e com o Museu de Percurso do Negro aqui em Porto Alegre, e por isso a gente faz uma formação voltada a isso — afirmou.
O estudante Tarso Ribeiro, 24 anos, avaliou a apresentação como "incrível". Ele acredita que a transmissão de conhecimento oral e por cultura in loco ajuda na sua formação como professor. Para ele, a participação do quilombo no Acampamento Farroupilha é igualmente relevante.
— É muito importante para mostrar a presença da história negra no RS, uma parcela da população que é muito esquecida e, muitas vezes, tratada com associações negativas. A gente lembra sempre do negro na questão da escravização, que é uma coisa importante de se lembrar, o sofrimento, mas também é muito bom trazer a positivação, a luta, a cultura, tudo que surgiu da história dos negros, que também produziram muito, criaram muitas histórias.