Esta reportagem foi produzida por Mariana Cardoso Carvalho, aluna de Jornalismo na UFRGS e vencedora da edição 2022 do projeto Primeira Pauta RBS, uma iniciativa do Grupo RBS.
São 11h no Centro Histórico de Porto Alegre. Dos bares e restaurantes escapa o perfume dos pratos sendo preparados para o almoço. Alho, manteiga, carnes, uma mistura de cheiros capaz de abrir o apetite de qualquer pessoa que passe pela região — mas basta olhar ao redor para perceber que nem todo mundo pode aplacar a fome. Robson, 42 anos, é um dos muitos homens que sonham com um prato de comida na Praça da Alfândega. Ele vive nas ruas há quase uma década e diz depender da boa vontade de quem o enxerga.
— Só quero poder comer e ter um canto pra dormir, mas é coisa difícil de arrumar, porque o povo não quer ver a gente nem pintado de ouro — lamenta.
Robson está entre as 1.685 pessoas em situação de rua em Porto Alegre que a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) identificou no primeiro semestre de 2022. O órgão tem 12 equipes de abordagem espalhadas pela cidade, que contabilizam quem não tem vínculos familiares ou uma casa para onde ir.
Desde que perdeu a mãe e o emprego, há oito anos, Robson se viu desnorteado: reuniu alguns pertences em uma sacola e saiu sem direção. Não tinha condições de arcar com o aluguel, a energia elétrica, as compras do mês. A pobreza o afastou do irmão e do sobrinho, os únicos parentes com quem ainda mantinha contato. O jeito era começar a vagar por Porto Alegre, tentando não morrer. De fome, de frio ou de solidão.
— Sou sozinho. Eu e Deus — diz. — Ele me chama pra ir pra essas casas, só que eu não vou, não — completa, apontando para o homem sentado a seu lado.
As "casas" a que Robson se refere são os abrigos da prefeitura. Segundo ele, abusos físicos e sexuais permeiam os locais. Depois de ser agredido em um deles, graças a um desentendimento por conta de uma escova de cabelo, decidiu jamais voltar.
O amigo que o acompanha é Adriano, 40 anos. Cuidadoso, com a fala macia, ele mostra a camiseta que usa, com a estampa de uma série de TV, e a boca vazia de dentes.
— Isso aqui foi o crack. Crack, cocaína, maconha, o que mais a senhora quer? — pergunta, listando as drogas que usa e que o trouxeram às ruas.
E pontua que não é simples deixar o vício:
— A gente não para de usar do nada. Esse mundo é louco. Uma angústia. Não dá para largar de um dia para o outro.
Adriano se afastou da família à medida que se aproximou do crack, há cerca de 15 anos. A esposa, insatisfeita com seu comportamento, o expulsou de casa e proibiu seu contato com os dois filhos. Embora sinta falta das crianças — hoje crescidas —, ele acredita que foi melhor assim. Não queria ser má influência para as pessoas que mais amava. Na Rua dos Andradas, a poucos metros da praça, uma mulher empunha um violão e canta Tears Dry On Their Own, composição de Amy Winehouse. A britânica morreu em decorrência de uma intoxicação por álcool em 2011, aos 27 anos.
A poucos metros da dupla Adriano e Robson está Vagner. Sentado sobre seu cobertor na entrada de uma loja, ele aponta o edifício La Porta e narra, com ar romântico, a história de seu nascimento. Tudo começou ali. A mãe, que era química, entrou em trabalho de parto quando fumava um cigarro na sacada do terceiro andar.
Vagner tem 62 anos e uma saudade dolorida da infância, quando a presença da mãe e dos avós não era apenas lembrança. Estudou e fez de tudo um pouco: serviu à Marinha, foi motorista, cozinheiro de hotel, paisagista. Agora, enfrentando um câncer e tendo perdido a visão de um dos olhos, já não pode trabalhar. Apesar de manter contato com os filhos e com a neta, prefere a liberdade da rua. Gosta de caminhar, de ver as pessoas, de cuidar dos bichos.
— Hoje eu sou mangueador — afirma, apontando a caixa em que recolhe moedas para explicar o significado da expressão. — As pessoas olham e não dão nada pela gente, mas tem vários moradores de rua que são juízes, advogados. Para ser morador de rua, tenho que estar todo sujo? Olha bem minhas unhas! Não tenho chulé, não tenho asa. Eu posso não ter um dente na boca, tenho três dentes só, mas sou caprichoso comigo e com o Max. Pago 10 pila para tomar banho em um hotel.
Engana-se quem pensa que todo o dinheiro que reúne é para ele. Vagner deixa bem claro que divide suas economias entre a bebida e a ração de Max, seu cachorro. Tudo o que cai na caixa de sapatos é para manter saudável, limpo e feliz o enorme pastor alemão.
— Quem não gosta de animal não gosta de si mesmo. O Max, eu amo ele. Todo mundo me conhece como o "Velho do Cachorro" — diz e acaricia o cão que dorme a seu lado.
Ainda assim, todo cuidado é pouco. Por ser de grande porte, Max precisa usar uma focinheira com frequência ou Vagner pode acabar multado pela Brigada Militar.
Enquanto conversava com a reportagem, Vagner foi abordado duas vezes por pessoas preocupadas com o animal. Questionaram onde estava sua água, se havia comida para ele. Sobre a água e a comida de Vagner, silêncio absoluto — ninguém perguntou.
Para Vanessa Rodrigues Silveira, a população em situação de rua permanece invisibilizada. A fundadora da organização Anjas de Batom, que faz festas mensais para acolher crianças e adultos socialmente vulneráveis, percebe que há diferenças entre as motivações que levam homens e mulheres para a vida nas ruas.
— Os homens saem de casa principalmente pelo uso de drogas. As mulheres, pela violência doméstica. E tudo é ainda mais duro para elas — ressalta Vanessa.
Lúcia sabe disso. Vendendo balas em frente a um supermercado do centro da Capital, tudo o que ela quer é trabalhar, ter autonomia e voltar a viver com os filhos. Deixou a casa em que morava com o marido por não suportar mais seus ataques. Vive na rua há pouco tempo — os braços ainda estão roxos de hematomas, o coração se questiona se o melhor não é perdoar o agressor. Mesmo com medo de outras agressões, agora que está mais exposta do que nunca, Lúcia mantém viva a esperança.
— Um dia, eu vou usar batom de novo. Vou me arrumar, ficar bonita, ter meu dinheiro, cuidar dos guris. E fazer alguma coisa por quem passa por isso aqui, como eu — torce Lúcia.