Esta reportagem foi produzida por Victória Rodrigues , aluna de Jornalismo na UFRGS e vencedora da edição 2022 do projeto Primeira Pauta RBS, uma iniciativa do Grupo RBS.
Mara Nunes, 64 anos, dona de casa, nunca havia se imaginado atuando em trabalhos sociais. Tampouco que hoje seria presidente de uma ONG na comunidade em que vive há mais de 40 anos, a Vila Planetário, na zona central de Porto Alegre. Numa região marcada pela violência e pelo tráfico de drogas, jovens estão suscetíveis a seguir esse caminho. Como tentativa de mudar esse cenário, nasceu a Misturaí, iniciativa que passou a distribuir refeições diárias e cestas básicas, oferecer cursos profissionalizantes para mulheres e ajudar cerca de 70 crianças com reforço escolar e atividades culturais.
Em 2020, devido ao impacto da pandemia, o projeto cresceu e chegou a contar com até 400 voluntários. Mara foi uma delas. Começou atuando na cozinha, até alcançar o cargo de presidente em 2022. Ao longo desse período, ajudou a liderar ações como a distribuição de quentinhas para os moradores. Desde o início da iniciativa, intitulada Amparaí, já foram distribuídas 210 mil unidades.
— Fizemos primeiro esse trabalho de alimentar as pessoas, inclusive as que estavam nas ruas, que não tinham chance de buscar um alimento — explica.
A realidade observada por Mara fica evidente no estudo Boletim Desigualdade nas Metrópoles, resultado de parceria entre PUCRS, Observatório das Metrópoles e Rede de Observatórios Sociais das Universidades Católicas da América Latina. O levantamento mostra que o efeito da pandemia foi ainda mais cruel entre os mais pobres. Na região metropolitana de Porto Alegre ocorreu aumento de pessoas em extrema pobreza, passando de 87 mil para 145 mil em dois anos. O estudo considera nessa situação pessoas com renda per capita de até R$ 160 mensais.
— Teve um recorde negativo da média de renda em 2021. Batemos o pior número da série histórica da renda média na região metropolitana da Capital. O que explica isso? A pandemia, a queda brutal dos empregos em 2020 e a interrupção do auxílio emergencial por um período — ressalta André Salata, um dos coordenadores do estudo e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS.
O especialista afirma que um programa de transferência de renda sustentável a longo prazo seria fundamental, além de medidas para incentivar a criação de empregos de qualidade e políticas sociais. Nesse sentido, projetos como o Misturaí também são vistos como iniciativas positivas.
— Em geral, os programas sociais são importantes justamente porque procuram garantir a possibilidade dessas pessoas conseguirem quebrar esse ciclo da pobreza — acrescenta.
Pensando em ampliar as possibilidades de renda para os moradores, o Misturaí oferece oficinas profissionalizantes, como cursos de costura e culinária. Desempregada, a dona de casa Maricelma Araújo, 43 anos, aprendeu no projeto a produzir sacolé gourmet e bolo de pote para vender, além de maneiras de reaproveitar alimentos.
— Em casa, a gente colocava muita coisa fora e agora utilizamos mais. A gente consegue inventar muitas coisas — diz a moradora da Planetário.
Educação e cultura caminhando juntos
Um dos objetivos da Misturaí para transformar a realidade da comunidade a longo prazo é investir na melhoria da educação das crianças e adolescentes que ali vivem. Foi com esse intuito que o Gurizadaí saiu do papel, oportunizando reforço no contraturno da escola com pedagogos e educadores especializados voluntários. O olhar assistencial da iniciativa para a educação dos jovens refletiu na rotina de Maricelma, que enfrentou durante a pandemia dificuldades com o ensino do filho Miguel, 11 anos.
— Era tudo pela internet, então foi meio difícil. Tive que pedir ajuda para minha família e também estudar bastante para poder explicar as matérias — relembra.
Essa foi a realidade encontrada por Carla Machado, professora voluntária, que chegou no projeto com a ideia de promover um curso de inglês, porém deparou com cenário bem mais complexo.
— Crianças de3º e 4º ano sem saber o abecedário, sem saber contas básicas, como eu ia colocar um curso de inglês? Então, foi se criando o reforço escolar e começamos realmente a abraçar e fazer todo esse acompanhamento desde a escola — conta.
O reforço é apenas uma das atividades oferecidas dentro da Casa de Descentralização da Cultura (Casa D), na Rua Santa Terezinha, ao lado da Vila Planetário, uma das parceiras do Gurizadaí. O espaço era uma escola abandonada e passou por reformas com o objetivo de acolher atividades culturais e educativas dos bairros periféricos de Porto Alegre. Atualmente, a Misturaí ocupa quatro salas nas quais acontecem oficinas de música, dança e teatro. Há também uma biblioteca, que possibilita contação de histórias e empréstimos de livros para estimular a leitura das crianças.
O filho de Maricelma é um dos alunos que passou a frequentar o reforço escolar, oferecido pelo projeto, além das oficinas culturais. Hoje, a dona de casa se orgulha da mudança de Miguel, que, antes introvertido, agora conversa e interage com todos.
— Dou graças a Deus que a ONG continua e espero que essa porta nunca se feche — acrescenta.
Daqui para a frente
Pensando no futuro, o Misturaí ampliou, neste ano, as oficinas oferecidas e incluiu a sustentabilidade. O projeto conta, inclusive, com uma horta comunitária à disposição dos moradores dentro da Vila Planetário. Responsável pelo espaço, a líder comunitária Neusa Machado, 61 anos, viu na iniciativa um escape para questões emocionais que enfrentava quando recebeu o convite.
— Sempre tive o sonho de plantar e quando surgiu a oportunidade de fazer parte do projeto foi uma fase boa para mim, porque antes estava deprimida por conta de problemas pessoais — afirma.
Para Mara, atual presidente do Misturaí, o projeto também foi uma forma de superação. Há 10 anos, a dona de casa teve o filho assassinado na mesma comunidade. O jovem foi executado numa esquina próxima de onde hoje fica a sede da Misturaí.
— Perdi meu filho para o tráfico de drogas. Até hoje tenho que passar por ali, onde ele caiu — relata.
Orgulhosa com o trabalho, já que o objetivo principal da ONG é justamente tirar as crianças das ruas e afastá-las da criminalidade, Mara acredita que se o filho tivesse tido a mesma oportunidade talvez seu desfecho tivesse sido diferente. É isso que ela busca para as crianças da comunidade.
— Saí do casulo e hoje faço esse trabalho com muito amor e carinho. Meus netos também fazem parte dos projetos e minha visão hoje é tirar as crianças do meio da violência — idealiza.