Faltando 21 dias para o início júri do Caso Kiss, o juiz que conduziu a ação por cerca de oito anos em Santa Maria aceitou conversar com GZH. Ulisses Louzada, 63 anos, é titular da 1ª Vara Criminal e do Tribunal do Júri da cidade. Passou por cinco comarcas antes de fixar residência na cidade do centro do Estado.
Durante uma hora conversou sobre o caso no plenário do foro, local onde recém havia concluído um júri que resultou com o réu condenado a 15 anos de prisão por homicídio. Professor universitário e magistrado há mais de 30 anos, recordou que estava preparado para conduzir o júri em Santa Maria.
Lembrou que estava tudo pronto para que o julgamento dos quatro réus fosse realizado no auditório da Universidade Federal de Santa Maria, instituição que leciona. Louzada evitou comentar a decisão sobre o chamado desaforamento do processo — a mudança de foro determinada pelo Tribunal de Justiça —, mas é nítida a frustração do juiz, ressaltando ter deixado essa posição clara antes da definição:
— Onde aconteceu o fato é o local onde deve ser julgado. Vem do princípio da territorialidade, e o princípio da territorialidade não é relativo, é absoluto. É uma leitura minha de que não existe competência relativa no processo penal. Onde ocorreu o fato serão julgados pelas pessoas do povo. (...) É a comunidade dizendo para a comunidade o que ela quer para ela, comunidade. É uma resposta que as pessoas vão dar para aquela comunidade. (...) Esse é o sentido da lei constitucional.
Louzada se considerava preparado para conduzir o júri e proferir a sentença:
— Eu já tinha tudo encaminhado três meses antes do dia marcado para o júri. Era um espaço para 1,1 mil pessoas. Mas colocaríamos cerca de 500 pessoas e reservamos cerca de 300 lugares para os familiares.
O juiz já havia, inclusive, acertado toda a segurança para o julgamento ao entrar em contato com a Brigada Militar, Exército, Polícia Rodoviária Federal e Força Aérea, além de providenciar reservas em hotéis.
— Eu estava no domingo na universidade a espera do júri que ocorreria na segunda-feira, quando veio a decisão (sobre o desaforamento) — diz.
A expectativa de Louzada era de um júri com duração de cinco dias. Em Porto Alegre, o juiz Orlando Faccini Neto, que atualmente está a frente do processo, estima cerca de duas semanas. Louzada disse que sempre buscou incluir o máximo de informações e depoimentos dentro do processo. Que, diante disso, não haveria necessidade de ouvir muitas pessoas, já que os relatos das mesmas já estariam à disposição. Pretendia limitar o número de testemunhas e, talvez, compensar com aumento no tempo dos debates.
Onde aconteceu o fato é o local onde deve ser julgado. Vem do princípio da territorialidade, e o princípio da territorialidade não é relativo, é absoluto.
Perguntado se mais gente tinha que estar no banco dos réus, já que a Polícia Civil havia indiciado 24 pessoas e o Ministério Público denunciado quatro, evitou responder.
— Não me cabe essa pergunta — disse o juiz ao também afirmar que não caberia a ele responder se os réus são culpados ou inocentes, mesmo não estando mais a frente da ação.
— Espero que seja o mais correto possível — complementou Louzada ao ser perguntado o que esperava do júri que ocorrerá a partir de 1º de dezembro, em Porto Alegre.
Para Louzada, o juiz precisa conhecer o processo desde a origem. É contra o chamado juiz de garantias, quando um magistrado conduz ação da fase investigatória e outro fica responsável pelo julgamento.
Uma ação efetiva
O juiz disse que o mundo inteiro "caminhou com o processo" e que sua preocupação inicial era de como tornar efetiva a ação judicial.
— Tinha que tornar esse processo não uma coisa que ficasse ad aeternum (para sempre). Ele estava tendo um início e eu tinha que planejar como seria a minha caminhada. Não a caminhada legal, procedimental, mas qual seria a minha caminhada para chegar ao fim do processo.
Disse que sempre teve como bandeira o processo penal constitucional, "efetivo, dialético, mas sempre através do contraditório". Lembra que quando conduziu a ação, não tinha a chamada dedicação exclusiva, que é quando um magistrado fica responsável somente por um determinado processo. Ele era responsável pelas decisões de todos os demais casos que tramitavam na vara.
— Quando chegou o processo da Kiss eu tinha mais de 1,5 mil júris já feitos, já tive mais de 50 mil processos, já tinha ouvido mais de 200 e tantas mil pessoas.
A todo momento, ao longo dos cerca de oito anos a frente da ação, o magistrado manifestava a sua preocupação com a efetividade do processo. Afinal, a 1ª Vara Criminal e do Tribunal do Júri de Santa Maria fazia cerca 1,1 mil audiências e 50 júris por ano. E precisaria dedicar um tempo considerável para o complexo processo da Kiss sem deixar que os demais atrasassem e dar uma resposta para a sociedade.
— Por duas vezes seguidas conseguimos ser a melhor vara criminal do Estado. A vara que mais trabalhou. Além do processo, agilizamos todos os demais processos da vara.
Perguntado que se tivesse dedicação exclusiva o processo tramitaria mais rápido, disse acreditar que não. Sustenta que não houve demora na ação da Kiss. Recorda que, da denúncia do Ministério Público, em março de 2013, até a sentença de pronúncia, a decisão que define o julgamento dos réus pelo Tribunal do Júri, se passaram três anos.
— Onde foram ouvidas 208 pessoas. Teve um depoimento que durou 12 horas, um interrogatório.
Nove cidades ouvindo testemunhas
Louzada percorreu o Estado para ouvir testemunhas do processo. Na Justiça, geralmente uma pessoa que não mora na cidade é ouvida por meio de carta precatória. Mas o magistrado entendeu que seria importante que ele mesmo pudesse ouvir essas pessoas, o que foi ratificado pelo Tribunal de Justiça. Ele e um servidor percorreram nove cidades para colher depoimentos para o processo.
— Fui com o meu dinheiro, paguei a minha gasolina, paguei o meu hotel. Em momento algum peguei diária, e teria direito a diária.
Estou trabalhando numa nova caminhada na minha vida. Porque na profissão a gente acaba condenando muitas pessoas. E agora eu estou tendo uma visão que tem que se recuperar muito as pessoas.
Louzada lembrou que o processo da Kiss foi o primeiro digitalizado no Estado e isso facilitava no momento das viagens, já que bastava levar um pendrive com todo o conteúdo da ação.
Apesar de não manifestada diretamente, é perceptível a frustração sobre o processo ter sido enviado a Porto Alegre. Inclusive, Louzada evita comentar diretamente o assunto, já que se trata decisão do Tribunal de Justiça. Diz que após a remessa do processo da Kiss passou a acumular o cartório com outras varas de execuções criminais. Ele é responsável por 11 presídios.
— Estou trabalhando numa nova estrutura, numa nova caminhada na minha vida. Porque na profissão a gente acaba condenando muitas pessoas. E agora eu estou tendo uma visão que tem que se recuperar muito as pessoas. Fizemos uma audiência pública para tentar implantar aqui em Santa Maria uma Apac.
A Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) é uma espécie de prisão onde os próprios detentos possuem a chave. Não há guarda armada no local. Ou seja, praticamente tudo que ocorre dentro da Apac é na base da confiança. Todos que estão cumprindo pena através desse método manifestaram interesse pela Apac. As regras, tarefas e horários são rígidos. Quem não se adaptar, volta para o sistema tradicional de cumprimento de pena, em presídios.
Já com tempo para uma vaga de desembargador no Tribunal de Justiça, disse que ainda não pensa nessa possibilidade.
— Gosto desse contato de audiência, de júri. Eu gosto de ser juiz. Eu gosto de contato com o réu, de sentir o fato. Me faz bem.
Livro sobre a Kiss
Ulisses Louzada pretende escrever um livro sobre o caso Kiss. Ainda não sabe quando isso vai ocorrer, mas certamente após o trânsito em julgado da ação.
— Tem muitas pessoas que se ofereceram para ajudar na escrita, como alguns jornalistas. Porque realmente eu tenho muita coisa para contar. A gente um dia vai ter que contar essa história. O que a gente passou. O que eu e meu parceiro (secretário) passamos. Quebramos o carro indo para uma cidade que a gente nem conhecia. E aí pegamos um pneu de moto de noite — resume o juiz ao não descartar dar a sua opinião sobre o caso quando tudo isso acabar.