— É um pouco como aquele som do Chorão (vocalista da banda Charlie Brown Jr.), "Hoje eu vou de limusine, mas eu já andei de trem" — brinca Dirceu Corrêa Jr., 44 anos, ao recordar o caminho percorrido até tornar-se CEO (diretor-executivo) de uma startup com base em Porto Alegre.
As startups são empresas criadas com objetivo de desenvolver ou aprimorar um modelo de negócio, preferencialmente algo escalável, que seja disruptivo e repetível. Um bom exemplo são os aplicativos de transporte e delivery, bancos digitais, empresas que emergiram com a febre das startups.
Com sua empresa tendo mais de 400 marcas atendidas pelo mundo, quase 30 pessoas empregadas e um faturamento chegando à casa dos seis dígitos, Dirceu hoje está distante do menino que corria pela Rua Santa Maria, na Vila São José, região do bairro Partenon. Ali, no pé do Morro da Cruz, o guri conheceu uma das primeiras "dualidades" da vida, como cita. Em casa, via uma comunidade afetada pela vulnerabilidade social de uma região periférica da Capital. Mas conseguia frequentar uma escola privada de renome, onde via um mundo totalmente diferente.
— O período no colégio particular foi muito legal, eu aprendi a ver como a escola e a comunidade tinham ambientes diferentes. E notar as carências que isso provoca. Isso me fez não ser indiferente a estas carências, mas também não ficar limitado por elas. Isso é uma referência para mim: eliminar crenças limitantes, mostrar que o mundo pode ser diferente — pontua.
Dirceu concluiu o Ensino Fundamental numa escola pública, o Colégio Estadual Inácio Montanha. E o primeiro passo na sua formação veio já no Ensino Médio. Optou por um local que tivesse também a educação técnica. Foi assim que formou-se no técnico em Administração no Colégio Estadual Protásio Alves.
— Na graduação, escolhi cursar Comunicação. Foi um período onde me envolvi com pesquisa e gestão de dados, utilizando muitos programas de computador, isso despertou meu interesse na área — relaciona Dirceu, falando sobre a empresa que toca hoje.
Revolução com inteligência artificial
Os estudos seguiram com uma titulação dupla de mestrado em Administração de Empresas, Gestão e Negócios, no Brasil e na França, concluídos em 2018. Mesma época em que começava a consolidar o trabalho da sua empresa, a Postmetria. Normalmente, quando se acessa um site, usa-se um serviço de um banco ou mesmo se faz compras numa loja, no final do atendimento surge uma pergunta: "de 0 a 10, quando você recomenda esse serviço?". Esse é o chamado Net Promoter Score (NPS).
Imagine uma plataforma que fosse capaz de interpretar através de inteligência artificial (IA) o que os clientes comentam de forma espontânea sobre a marca nas redes sociais da empresa ou mesmo em canais internos, como o Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC). Pois bem, foi isso que Dirceu fez, ao escrever o algoritmo inicial do Spontaneous NPS (sNPS). Hoje, o serviço é o carro-chefe da Postmetria, que já monitorou ou monitora mais de 400 marcas nacionais e internacionais, como Coca-Cola, Brastemp, LG, entre outras.
— Temos uma plataforma com IA e machine learning, que é quando a própria máquina aprende a realizar uma tarefa a partir de suas experiências. Na empresa, temos também o que a gente chama de professor de IA, que é auditor de amostras do que a IA analisa — diz Dirceu.
Em seu site, a Postmetria faz uma ilustração para explicar os auditores. "É como se a IA precisasse aprender a chutar a bola e, ao invés de fazer isso sozinha, tivesse um técnico que ensinaria a ela sobre", diz o texto. Em artigo recente, a revista Consumidor Moderno apontou o sNPS, tecnologia criada em Porto Alegre com a participação crucial de Dirceu, como a evolução do NPS.
Conscientização sobre desigualdades
E tudo isso, por consequência, leva Dirceu ao reconhecimento. Viagens de negócios, palestrar em fóruns e congressos, participação em aulas inaugurais de universidades, encontros de CEOs. E o que todos esses cenários têm em comum? Dirceu é quase sempre o único homem negro presente entre os cargos de liderança.
— Conto nos dedos quantos outros CEOs negros eu já vi. Aqui no Rio Grande do Sul, talvez um ou dois eu conheça, é uma raridade. Definitivamente, isso ainda é reflexo de uma exclusão não só econômica, mas também educacional — opina Dirceu.
Para o CEO da Postmetria, o fim da escravidão no Brasil, promulgado há 133 anos, é recente. Os efeitos da exclusão social, com os negros ex-escravos largados à própria sorte sem qualquer apoio do Estado, deixaram consequências que ainda hoje são latentes. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, do total de trabalhadores do país, nos cargos de direção, só 2,2% são homens negros, enquanto 6,4% são homens não negros. Entre as mulheres, 1,9% são negras, enquanto 5% são não negras. Os dados são da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (Pnad Contínua).
— Pense que um escravo ganhou a liberdade e nada mais. Ele não tinha uma terra para plantar, uma casa para morar e ainda lhe afastavam da chave do cofre, que é a educação — sintetiza Dirceu.
E as dualidades que levaram Dirceu a entender a desigualdade, mas não tomá-la como um limitante, também lhe incentivaram a "botar mais a mão na massa", como define ao citar seu papel de diretor de estratégia e planejamento da Odabá, uma associação de afroeempreendedorismo. No idioma iorubá, odabá significa empresário.
A ideia da entidade é promover a ascensão econômica do povo negro através do empreendedorismo, praticamente uma definição do que é o afroempreendedorismo. A Odabá atua focada em três pilares: a qualificação empreendedora desses homens e mulheres através de cursos, oficinas e formações voltadas ao empreendedorismo; a eliminação das crenças limitantes, como os desafios impostos por uma sociedade racista; e a valorização da produção cultural de pessoal negras.
— Queremos ocupar espaços onde negros não costumam estar. Na sexta-feira (ontem, dia 18), temos o jantar anual da Odabá. Será no Sheraton Hotel, uma escolha feita de propósito, para ocuparmos estes espaços. O evento tem a presença da Rachel Maia, mulher, negra e empresária brasileira, ex-CEO da Lacoste (marca de roupas) no Brasil — conta Dirceu.
Cartão de crédito para terreiros
Na Axé Brasil (AXB), não é o nome estar num sistema de restrição de crédito ou o endividamento que impedirá uma pessoa de ter um cartão de crédito. Os olhares estarão voltados para a análise das condições de honrar com os pagamentos. Se a renda é compatível com a possibilidade de ter o cartão e pagar a fatura. Os limites serão menores do que outros cartões mais convencionais, entre R$ 300 e R$ 500. O objetivo é atender um mercado pouco explorado, o de terreiros de religiões de matriz africana. A AXB é uma startup de Porto Alegre criada por Cristiano Barcellos, 43 anos, e seu sócio, Giovani Machado, 53 anos. Segundo Cristiano, a ideia é incentivar comércios locais e comunidades periféricas.
— As floras para terreiros são adquiridas muito no Mercado Público, em locais que muitas vezes não têm ligação com o povo negro. Com incentivo, pessoas de terreiros podem procurar comércios locais, também de pessoas negras — exemplifica.
Apesar do foco num setor, o cartão não é limitado, podendo ser requisitado por quem se enquadra nas características de vulnerabilidade social, como mulheres chefes de família com renda de uma salário mínimo. O AXB funciona por um aplicativo de celular, como um carteira digital de crédito. Nos comércios conveniados, um QR Code para pagamento estará disponível. A ideia chegaria ao mercado em março de 2020, mas a pandemia mudou os planos.
— Não sabíamos como ficaria o cenário do crédito no país, por isso, redesenhamos o cronograma — pontua Cristiano.
Reafro
Agora, o AXB deve entrar no mercado em janeiro de 2022. Além da startup, Cristiano também integra a Rede Brasil Afroempreendedor (Reafro). No Rio Grande do Sul, a entidade busca abrir espaços em locais onde os negros não costumavam estar. Nesta mês, duas frentes parlamentares com foco no afroempreendedorismo (na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa) foram lançadas, fruto da interlocução da Reafro.
— Conseguimos uma parceria inédita com a Associação Comercial de Porto Alegre. Uma entidade negra nunca havia feito esse tipo de parceria com uma entidade centenária com a associação — comemora Cristiano.
Entre as bandeiras da Reafro, a qualificação e a disponibilização de microcrédito para empreendedores negros se destacam. A cobrança por dados públicos que tragam mais informação sobre a presença de negros e negras no empreendedorismo também é um caminho necessário para fomentar políticas públicas nesse sentido, pontua Cristiano.
— Não temos informação oficial sobre a participação da população negra num recorte mais econômico da cidade — cita Cristiano, falando sobre a Capital.
A arte como bandeira
Entre os diversos eventos para marcar o Dia da Consciência Negra, uma feira de afroempreendorismo também ganhou espaço na Capital. Realizada entre ontem e este sábado, o evento ocorre no Largo Zumbi dos Palmares, no bairro Cidade Baixa. Entre os expositores abarcados pela rede de feiras livres Todos os Tons de Negros está o Kilombo da Arte, grupo criado há mais de 15 anos por Anna Maack, 51 anos, e Kadoo Guerreiro, 47 anos. Como eles citam, o Kilombo é uma iniciativa de gestão cultural e ação social. Além do trabalho com itens personalizados e artesanatos da cultura africana, eles auxiliam outros afroempreendedores da rede Todos os Tons de Negros.
— Organizamos cursos de formação com foco no empreendedorismo, auxiliamos quem quer abrir o MEI (Microempreendedor Individual) e também produzimos material gráfico para esses colegas — cita Anna.
O serviço é feito sem cobranças, apenas com o objetivo de gerar crescimento para todos os integrantes do grupo. Conforme Anna, são mais de 50 afroempreendedores na rede. Nesta sexta-feira (19), o Diário Gaúcho visitou a feira e acompanhou o trabalho no estande de Anna e Kadoo. Neste sábado (20), os trabalhos começam às 13h30min e vão até as 21h30min.
Além de produtos artesanais, gastronômicos e de confecções, haverá apresentações artístico-culturais e a 1ª Feira do Livro Afro Porto-alegrense. O evento também terá espaço para as crianças, com contação de histórias e brincadeiras. A ação é uma parceria da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) com a Secretaria Municipal de Educação (Smed), o Conselho Municipal dos Direitos do Povo Negro (CNegro) e o Coletivo de Escritores Negros de Porto Alegre.