O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) abriu uma comissão de sindicância interna para "apurar a regularidade dos atos da 6ª Câmara de Julgamentos", um dos colegiados em que já foram analisadas denúncias contra médicos. A investigação foi oficializada com a publicação da portaria 45/2021, do Cremers, no Diário Oficial da União no dia 1º de outubro. O prazo para a conclusão dos trabalhos da comissão de sindicância, integrada por três pessoas nomeadas na portaria, é de 180 dias, com hipótese de prorrogação mediante justificativa.
A apuração foi designada porque a 6ª Câmara de Julgamentos apreciou sindicâncias e processos ético-profissionais (PEPs) contra médicos mesmo depois de ter sido oficialmente extinta por ato da diretoria do Cremers, em março de 2019, e jamais recriada formalmente — a reportagem checou 51 atas de reuniões de diretoria e plenárias do Cremers desde então.
O corregedor do Conselho, Carlos Sparta, afirmou à reportagem que, de agosto de 2020 até o final de setembro de 2021, a 6ª Câmara analisou e emitiu decisões sobre "aproximadamente 58 sindicâncias e 26 PEPs". Nesse período, o colegiado estava extinto formalmente. Em nota, o Cremers disse que não poderia confirmar o número exato de processos julgados pela 6ª Câmara e que agora estão sob análise de regularidade.
Conforme a entidade, os possíveis desfechos dependem da conclusão da sindicância interna e da aprovação de seu relatório pelo corpo de conselheiros. Para anulação de sindicância ou processo ético-profissional, deve estar demonstrado algum prejuízo às partes, o que deve ser analisado caso a caso.
O Cremers é uma autarquia federal cuja finalidade é regular e fiscalizar o exercício da medicina, atuando como poder julgador e punitivo em processos de possíveis infrações éticas. Atualmente, há cinco câmaras em funcionamento na entidade, compostas por sete conselheiros cada uma.
Nebulização com hidroxicloroquina
O Cremers ainda informou que não pode identificar os casos e os nomes dos profissionais cujos processos estão em reanálise devido ao sigilo processual. A reportagem apurou que um dos casos da 6ª Câmara de Julgamentos sob revisão é a sindicância que investigou denúncia a respeito da morte de Lourenço Pereira, 69 anos, que recebeu nebulizações de hidroxicloroquina na cidade gaúcha de Alecrim. A sindicância que apurou a denúncia de familiares contra o médico responsável pelo tratamento experimental foi arquivada pela 6ª Câmara de Julgamentos em julho de 2021, mais de dois anos após a extinção desse colegiado na estrutura do Cremers.
O caso envolvia denúncia contra o médico Paulo Gilberto Dorneles. No Hospital de Caridade de Alecrim, em março de 2021, ele receitou quatro nebulizações de hidroxicloroquina a Pereira, que tinha covid-19 e doença pulmonar crônica. Os protocolos do Ministério da Saúde indicavam o uso do medicamento somente pela via oral, conforme previsão da bula. O médico, contudo, fez o tratamento experimental por inalação do fármaco diluído, o que ocorreu sem autorização da família do enfermo. Pereira morreu em 22 de março de 2021, três dias depois de ser internado.
O medicamento não tem eficácia para o tratamento da covid-19, conforme já detectado por pesquisa da Universidade de Oxford, na Inglaterra. O uso traz risco de efeitos adversos como taquicardia.
Ao receber a denúncia da família, o Cremers abriu uma sindicância, fase inicial em que uma das câmaras julgadoras decide se o caso deve ser arquivado por falta de elementos ou se há indícios consistentes que demandam a abertura de um processo ético-profissional (PEP). Eventual punição somente pode ocorrer no PEP, onde a câmara atua como um tribunal que ouve as partes, incluindo as testemunhas, o acusado e os advogados antes da decisão.
O caso do médico de Alecrim foi pautado para a 6ª Câmara, mas há dúvida sobre quem determinou isso. O corregedor do Cremers, Carlos Sparta, diz não se recordar do autor da deliberação. A sindicância contra o médico teve como relator, chamado de conselheiro-sindicante, o subcorregedor do Cremers, Marcos André dos Santos. Ele foi designado por Sparta para a função. A sessão de julgamento, no dia 29 de julho de 2021, também foi presidida pelo corregedor Sparta.
A ata 4.222 (clique aqui e tenha acesso ao documento), que traz as informações sobre o julgamento, informa que participaram da análise do caso outros quatro conselheiros do Cremers, sendo um deles titular e três suplentes. O relato do conselheiro-sindicante, expresso em documento oficial do Cremers, traz o voto do subcorregedor pelo arquivamento da sindicância, o que encerraria o caso antes de análise mais aprofundada do PEP. Ele foi acompanhado de forma unânime pelos demais conselheiros que participaram do julgamento.
"O dr. Paulo Gilberto fez o que estava ao seu alcance e até mesmo além, quando arriscou sua carreira utilizando medicamento não autorizado, fora de protocolos de pesquisa, para tentar salvar a vida de seu paciente. Médicos como o dr. Paulo Gilberto devem ser vistos de forma mais respeitosa. (...) Concluo pelo arquivamento da presente sindicância (...) por não haver indícios de infração ao Código de Ética Médica", defendeu, no voto, o conselheiro-sindicante e subcorregedor Santos.
A reportagem enviou seis perguntas para a direção do Cremers a respeito da possível nulidade de uma decisão exarada por colegiado que não existe mais. Também foi questionada a razão de o julgamento não ter ocorrido em uma das cinco câmaras do Cremers que estão em funcionamento regular.
A direção do Conselho respondeu em nota: "A diretoria do Cremers informa que tomou conhecimento dos fatos relatados e que vai buscar todas as informações necessárias para o esclarecimento dos acontecimentos. Também comunica que providências éticas e legais serão tomadas para que a lisura dos atos deste conselho seja preservada e, especialmente, para que qualquer decisão que eventualmente tenha sido tomada de forma equivocada seja corrigida."
O corregedor Sparta, em entrevista por telefone, alegou que a 6ª Câmara de Julgamentos jamais teria sido extinta de fato. Isso porque, segundo ele, depois de aprovada em reunião deliberativa da diretoria, a decisão de extinguir o colegiado teria de ser novamente aprovada em sessão plenária do conselho. No regimento interno do Cremers e no Código de Processo Ético Profissional, não há menção a essa eventual obrigatoriedade. A reportagem pediu ao corregedor que indicasse a norma legal que embasava sua afirmação, mas ele não fez o apontamento.
— Eu não saberia de cabeça onde está, mas todas as decisões aprovadas pela diretoria devem ser passadas pela plenária. As decisões da plenária são soberanas. Essa é a rotina. A diretoria não tem essa autonomia — afirmou Sparta (veja contraponto na íntegra ao final).
Família do paciente que faleceu considera caso "grave"
Filha de Lourenço Pereira, o homem que faleceu aos 69 anos depois das nebulizações de hidroxicloroquina, Eliziane Pereira foi a responsável pela denúncia contra o médico Paulo Gilberto Dorneles junto ao Cremers. Ela considerou "grave" o fato de a sindicância ter sido julgada em um colegiado que não existia mais no conselho profissional.
É algo muito sério. Eu recebi a decisão (de arquivamento) no dia 10 de agosto. O advogado me orientou a pedir o processo completo. Quando eles encaminharam, deixaram bem claro em um e-mail que eu deveria manter sigilo absoluto sobre o conteúdo, podendo ser processada civil e criminalmente
ELIZIANE PEREIRA
Filha de Lourenço Pereira
— É algo muito sério. Eu recebi a decisão (de arquivamento) no dia 10 de agosto. O advogado me orientou a pedir o processo completo. Quando eles encaminharam, deixaram bem claro em um e-mail que eu deveria manter sigilo absoluto sobre o conteúdo, podendo ser processada civil e criminalmente. Faz muito sentido isso ter acontecido — lamentou Eliziane.
Ela recorreu ao Conselho Federal de Medicina (CFM) da decisão do Cremers de encerrar o caso. Também ingressou com uma nova representação contra o médico de Alecrim no conselho regional, desta vez incluindo na denúncia o laudo de uma perícia privada contratada pela família, cuja conclusão aponta supostos erros médicos durante a internação.
Cronologia do episódio
8 de novembro de 2018 - A corregedoria, que tem assento nas reuniões de diretoria do Cremers, "comunica" aos conselheiros que "foi criada a 6ª Câmara para apreciação de sindicâncias e julgamento de processos ético-profissionais". As informações sobre a aprovação e a comunicação constam na ata 3.785, da sessão plenária de 8 de novembro de 2018.
22 de março de 2019 - Decisão tomada em reunião de diretoria aprova e determina a extinção da 6ª Câmara de Julgamento, com redistribuição dos seus membros nos demais colegiados que permaneceram em atividade. Informação registrada formalmente na ata 12/2019, da reunião ordinária de diretoria deliberativa de 22 de março de 2019. O atual corregedor Carlos Sparta participou da reunião deliberativa e consta na ata de registro da extinção da 6ª Câmara. À época, ele era vice-presidente do Cremers.
Março de 2021 - Internado no Hospital de Caridade de Alecrim, homem de 69 anos testa positivo para covid-19. O médico Paulo Gilberto Dorneles receita quatro nebulizações de hidroxicloroquina diluída, tratamento experimental que não é previsto em protocolos de saúde. A família diz não ter autorizado nem ter sido consultada sobre o procedimento. O paciente, que tinha comorbidades, apresenta piora e morre.
Abril de 2021 - Filha do paciente que morreu, Eliziane Pereira apresenta ao Cremers uma denúncia por supostas infrações éticas cometidas pelo médico.
2021, em data desconhecida - Cremers remete a sindicância contra o médico para a 6ª Câmara de Julgamentos. Esse colegiado estava extinto há mais de dois anos, por decisão da direção do Cremers.
29 de julho de 2021 - Subcorregedor do Cremers é o conselheiro-sindicante, equivalente à função de relator do caso, e vota pelo arquivamento. Em sessão presidida pelo corregedor do Cremers, Carlos Sparta, todos os conselheiros participantes acompanham a posição do subcorregedor e a denúncia é arquivada por unanimidade.
Contraponto
O que diz Carlos Sparta, corregedor do Cremers
"Só quem extingue, abre ou faz deliberação é a sessão plenária, formada pelos 42 conselheiros. Ele (antigo corregedor) falou na reunião de diretoria sobre a extinção, só que acabou não levando à plenária. Talvez tenha esquecido. Então essa câmara nunca foi extinta. Só ficou sem trabalhar por um período. Nós tivemos a pandemia e o CFM (Conselho Federal de Medicina), em março do ano passado, suspendeu todos os processos. O Cremers ficou parado, sem trabalhar em processos. Como eu já era o corregedor, falei: 'Vou voltar com a 6ª câmara para a gente conseguir pegar todo esse estoque atrasado, já que ficamos praticamente todo o primeiro semestre de 2020 sem julgar'. Então, em agosto do ano passado, a 6ª câmara voltou à ativa."