Livros didáticos que deveriam ser usados na educação de crianças e jovens estão indo parar em galpões de reciclagem e virando até papel higiênico. Exibida neste domingo (8) pelo Fantástico, uma investigação da RBS TV revela descontrole na execução do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC). Só neste ano, o programa consumiu R$ 2,1 bilhões na compra e entrega de 126 milhões de livros a 35 milhões de alunos em todo país. Nem todos chegam à sala de aula.
O ponto de partida da reportagem é um empresário que trabalha com reciclagem na região metropolitana de Porto Alegre. Ele conta ser chamado por diretores de escolas que oferecem livros nunca utilizados, encalhados em bibliotecas e depósitos. O quilo desse tipo de papel vale R$ 0,30 — valor 50 vezes menor do que é pago pelo MEC por livro às editoras: R$ 16.
— Toda vez que via aquilo, me doía. Desperdício de dinheiro público, porque a gente vê um livro que ainda tem validade, e que não foi nem aberto — diz o empresário.
A reportagem acompanhou a visita do reciclador a uma dessas escolas e encontrou uma sala entulhada de livros, muitos dos quais ainda dentro do prazo de validade, nunca utilizados pelos alunos.
— Quando sobra, descarta — afirma a diretora ao empresário, em tom de resignação, alegando que o dinheiro da venda serve para custear pequenas despesas da escola.
Depois de vendidos ou doados pelas escolas, os livros vão parar em galpões de reciclagem, de onde são encaminhados a fábricas de papel reciclável, especialmente de papel higiênico. A equipe da RBS TV esteve em depósitos de três cidades. Em São Leopoldo, flagrou o passo a passo do desperdício: um a um, os livros didáticos são retirados de uma pilha e levados a uma esteira para, em seguida, serem triturados.
Em Cachoeirinha, foram encontrados livros de disciplinas como artes, matemática e português, com validade entre 2019 e 2022, ainda empacotados. Na Capital, livros dentro da validade também foram encontrados.
O secretário da Educação do Rio Grande do Sul, Faisal Karam, calcula que o excesso de livros acontece porque o MEC não estaria levando em conta o número de alunos evadidos em um ano para calcular a quantidade que será enviada às escolas. Isso poderia resultar em mais de 1 milhão de unidades em excesso no Estado.
O descarte de livros didáticos por escolas gaúchas é tão institucionalizado que o governo autorizou duas ONGs a recolher o material com validade vencida. Com a venda dos livros, as instituições bancam seus projetos sociais.
Assim, o prejuízo é minimizado. Porém, Felipe Pessoa, idealizador de uma ONG beneficiada, a Passarte, diz que o desperdício ainda é grande:
— Os recursos da venda dos livros equivalem a apenas 5% desse prejuízo.
Sistema revela descontrole
Os mesmos livros que sobram numa escola faltam em outra. Foi o que descobriu a reportagem da RBS TV ao percorrer diversas instituições do Rio Grande do Sul. Na Escola Estadual Cruzeiro do Sul, em São Lourenço do Sul, pelo menos uma tonelada de livros se acumula na biblioteca.
Os professores alegam que foram enviados em quantidades maiores que o necessário, ou não se adequam ao currículo. Enquanto isso, na mesma escola, alunos de matemática e português têm de sentar em duplas ou copiar do quadro porque a quantidade de livros é insuficiente.
— Tenho 22 alunos e está faltando para cinco. Então, faço duplas — diz a professora Maria Delfina.
O sistema de remanejamento de livros criado pelo MEC, alegam os professores, não funciona. A reportagem esteve no Ciep Romário de Oliveira, de Alegrete, na semana em que um carregamento de livros para 2020 recém havia sido entregue pelos Correios. A coordenadora pedagógica Helena Brandolt abriu os pacotes e chegou à conclusão de que nada será aproveitado pela escola.
São os mesmos livros que faltam em São Lourenço. Com autorização do diretor João Batista Minoso, a reportagem coletou todos e parte deles foi entregue à turma de São Lourenço, que era obrigada a copiar as lições do quadro.
CGU anuncia investigação
Após ser procurado pela reportagem, o ministro-chefe da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário, anunciou auditoria no Programa Nacional do Livro Didático do MEC. Pontualmente, a controladoria já havia detectado o problema no Paraná e no Piauí.
— A gente vai ter de estudar basicamente o processo como um todo, desde o pedido até a aquisição ocorrida aqui em Brasília. E verificar como que pode mudar o processo. Pontualmente, já se tem certeza de que o sistema não está funcionando bem — diz Rosário.
A diretora de Ações Educacionais do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE), Karine Silva dos Santos, disse que o MEC já leva em conta os alunos evadidos e que migram entre escolas públicas e privadas na hora de calcular as remessas de livros e que cabe a Estados e municípios operar a ferramenta de remanejamento entre as escolas. A diretora disse ainda que uma campanha nacional irá conscientizar, a partir de janeiro de 2020, sobre a correta utilização do material didático. Equipes do FNDE serão enviadas ao Rio Grande do Sul para apurar o envio à reciclagem.
— Todo descarte de livros válidos é contrário à legislação que preconiza o Programa Nacional do Livro Didático. É preciso apurar esse descarte — afirma Karine.