Há um mês e meio no Rio Grande do Sul, o último grupo de venezuelanos que chegou ao Estado no processo de interiorização do governo federal encaminha seu futuro no mercado de trabalho. Dos 65 adultos que chegaram a Porto Alegre, Viamão e Santo Antônio da Patrulha, 34 já conseguiram emprego.
Na Capital, quatro dos oito adultos que chegaram em dezembro atuam na construção civil e no comércio. Em Santo Antônio da Patrulha, cerca de 30% dos imigrantes estão empregados no setor metal mecânico e em consultórios, como recepcionistas ou auxiliares de serviços gerais.
A cidade com o processo mais avançado é Viamão, que já tem assinadas as carteiras de 18 dos 23 adultos. Há casos como da família Rivas, em que ambos os provedores estão empregados.
— Era o que eu mais queria, um trabalho — conta Ramon Rivas, 40 anos, que começa na próxima segunda-feira (4) a trabalhar em uma colheita de arroz em Águas Claras.
A esposa dele, Rosa, vai trabalhar em um supermercado do bairro Cecília e já planeja mandar dinheiro para os quatro filhos que ficaram na Venezuela.
A história da família Rivas se repete: felicidade pela admissão, sem se importar com a qualificação que trazem em seus currículos. Ramon era mecânico no seu país natal, e não sabe o que esperar no novo trabalho na lavoura.
Há mudanças ainda mais drásticas: Evelia Josefina Garcia Ramos, 47 anos, trabalhava em uma multinacional que explora petróleo na Venezuela. Técnica formada em higiene e segurança industrial, ela também iniciará a carreira em uma nova área.
— Vou para um mercado, nem sei direito no quê. Mas de que me servia trabalhar no meu país, se eu não recebia o suficiente para comprar comida? Aqui faço qualquer coisa e tenho certeza que vou receber, podendo mais à frente alugar uma casa para meus filhos — relata, com a angústia de quem corre contra o tempo. O programa de acolhimento na Vila Marista, em Viamão, segue a lógica de ajuda do governo federal, com prazo máximo de seis meses para hospedagem subsidiada.
Organização em comunidade
Acostumar os imigrantes à rotina em grupo foi um dos maiores desafios dos trabalhadores que mantém a comunidade marista. Acomodadas em onze quartos, as 10 famílias são responsáveis pelas refeições diárias. Duas delas são escolhidas por semana, uma para ser responsável pelo café da manhã e da tarde e outra pelo almoço e janta. Cerca de duas toneladas de comida são entregues pelo governo federal todos os meses no Porto de Rio Grande. O município é responsável por buscar os suprimentos.
Elisabete Barreiras, 36 anos, monta os sanduíches, com mortadela e queijo, e passa o café. O suor que pinga no rosto, antes das 8h, é a prova de que a mesa será posta no horário. Uma sirene avisa a todos que precisam descer ao refeitório.
— A organização é boa, assim a gente compartilha tudo — explica, colocando sobre a bandeja uma maçã, que será servida como sobremesa.
Nutrição melhor, mas com a memória da fome
O estado de desnutrição dos imigrantes demandou da prefeitura a construção de um plano nutricional. Responsável pela segurança alimentar na Secretaria Municipal de Assistência Social, Maria Inês Martins afirma que, pela escassez de comida, eles se acostumaram a ingerir alimentos calóricos, para aguentar o trabalho pesado:
— Estamos introduzindo legumes e verduras na dieta deles. Mesmo assim, todos tiveram ganho de peso.
Com 90 quilos, Albenys Aguilar, 41 anos, admite que engordou 12 quilos desde que chegou ao Rio Grande do Sul.
— Na Venezuela, não tinha comida para a família. Nada de comida, ninguém tinha nada. Aqui, gosto dos vegetais — afirma, entre risos e um olhar até certo ponto envergonhado.
— Engordei porque os vegetais sempre vêm acompanhados de outra comida — admite, às gargalhadas.
No topo dos pedidos dos venezuelanos, estão batata e polenta fritas, macarrão e carne.
— Churrasco eu não comi — conta, desapontado, o estudante Samuel Ramos, 19 anos.
Responsável pela organização do espaço — que dos anos 1960 até 2000 serviu de seminário para formação dos Maristas — Cristiane Camargo relata a triste realidade que presenciou nas primeiras semanas de abrigo, quando os novos moradores escondiam comida nos quartos:
— Eles levaram os lanches para o quarto, por medo de faltar. Um levou 10 sanduíches.
"Casa comigo?"
Cerca de 20 profissionais trabalham para dar conta dos mais de 2 mil metros quadrados da Vila Marista, que tem jardim, sala com brinquedos para os pequenos e um espaço onde serão ministradas aulas de português. O idioma é um dos maiores entraves para a inserção dos imigrantes no Brasil. Segundo o irmão Miguel Orlandi, porta-voz da Rede Marista, a ideia é que as lições se tornem semanais, após a volta do período de férias dos docentes, que são voluntários.
Carinhosos com os funcionários, são recorrentes os abraços e demonstrações de afeto. E alguns até exageram.
— Vai me complicar em casa?! — questiona sorridente uma das funcionárias terceirizadas, que cuida da limpeza.
Ana, que não revelou o sobrenome, foi surpreendida por um pedido inusitado:
— Ele falou: "Casa comigo?". Eu disse que já sou casada, mas que quero continuar ali, porque até espanhol já to aprendendo — finaliza, com um sorriso ainda mais largo no rosto.