Em uma residência simples de uma cidade da Região Metropolitana, dois adolescentes que frequentaram o curso pré-militar organizado por Roger Montanha de Moura Alcantara, 23 anos, relataram a GauchaZH como era a rotina de treinamentos até a exaustão a que foram submetidos. O instrutor, egresso do Exército, é investigado pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Canoas por suspeita de tortura e outros dois crimes.
Durante o curso, que incluía saídas de campo, os adolescentes eram amarrados em paus de arara, passando por testes com punição de choque elétrico, sufocamento com toalhas, sendo obrigados a matar passarinhos, comer sua carne e beber o sangue da ave.
Assustado com a repercussão do caso, o adolescente de 13 anos conta ter se dado conta de que algo estava errado depois de ter as mãos amarradas e ser colocado de cabeça para baixo preso a uma taquara. Ele só contou o episódio para os pais depois de um mês. Temia ser considerado "fraco", uma das palavras que o instrutor usava para expôr em redes sociais os adolescentes que abandonavam o curso.
Era sem nenhuma segurança. Ele simplesmente colocava todo mundo lá dentro (de um lago), sem ninguém saber nadar. Não perguntava se tinha problema respiratório. No último acampamento, estava 1ºC, e ele pediu para gente entrar de madrugada dentro da água e depois correr molhado oito quilômetros.
ADOLESCENTE DE 13 ANOS
Participou do curso pré-militar
A outra adolescente que falou com a reportagem, de 16 anos, descreve a ocasião na qual um grupo precisou segurar uma lona debaixo de uma fogueira até que ela derretesse. Pedaços da cobertura quente caíam sobre as vítimas. Apesar do trauma, ambos ainda sonham em ingressar nas Forças Armadas.
Leia os principais trechos da entrevista:
Como foi o episódio do pau de arara?
Menino de 13 anos – Eles pegaram e me botaram um enforca-gato (abraçadeira de nylon) nas mãos, passaram um pedaço de taquara entre as minhas mãos e minhas pernas e me penduraram. Mostravam algumas formas de tortura, como botar um pano na cara com água, tiros de airsoft (armas de de pressão que disparam bolinhas de plástico).
Que outros tipos de violência vocês foram vítimas?
Menina de 16 anos – Ele pedia para a gente segurar uma lona, porque não deu para prender nas taquaras. Ele fez uma fogueira debaixo, no meio da gente, e começou tocar folha, pneus. No que o fogo subiu, a lona começou a cair, derretendo quente na gente.
Quando vocês se deram conta de que aquilo não estava correto?
Menina – Foi exatamente nessa questão da lona. Fiquei (no treinamento) porque meu pai e minha mãe estavam lá. Eles (os pais) não viram essa cena porque sempre que ele (Alcantara) ia fazer alguma coisa desse tipo, afastava-se para ninguém criticar.
Menino - No penúltimo e último campo, por causa do tapa (na cara). Vi uma criança levando choque, rojão perto do rosto.
O que mais acontecia durante o treinamento?
Menino – Era sem nenhuma segurança. Ele simplesmente colocava todo mundo lá dentro (de um lago), sem ninguém saber nadar. Não perguntava se tinha problema respiratório. Ele pedia para a gente entrar lá. No último acampamento, estava 1ºC, e ele pediu para gente entrar de madrugada dentro da água e depois correr molhado oito quilômetros.
E se alguém não aceitasse?
Menino – Se chegasse atrasado na aula, cada minuto contava uma "completa" (sequência de exercícios). Eram 15 polichinelos, 15 abdominais, 15 flexões e 15 pulinhos de galo (pulo na posição agachada).
Como eram os exercícios de corrida?
Menino – Fazia a pista correndo. No começo, tinha de levantar pneu. No que ia acontecendo, alguém ia tocando rojão, foguete, para atordoar. Aí, tinha os obstáculos, passava por alguém que estava dando choque (com pistola taser). Depois, tinha de subir em uma árvore segurando um pedaço de madeira, que simulava um FAL (fuzil usado pelas Forças Armadas). Passava na água e depois passava de novo pela pessoa que estava dando choque. Depois, que terminava tudo, ia para a piscina. E ali terminava.
Quando vocês tiveram de tomar sangue de passarinho, como foi?
Menina – Foi no ano passado. Pensei: "Nossa, não vou fazer isso". Aí, ele falava "então tu vai baixar". Eu disse: "Então, eu como". Daí eu comi, mas achei pesado.
Menino – Ele ameaçava tirar a liderança.
O que significava isso?
Menino – No caso, tu começavas como recruta, depois virava líder 1, líder 2. Vai até Comandos Alfa. Ele dizia: "Se tu não fizer isso, tu vai perder a tua liderança".
Em algum momento vocês chegaram a gostar do curso?
Menina – A gente gostava (no início). A gente não faltava uma aula.
Por quê? Pensava em entrar para as Forças Armadas?
Menina – Sim. A gente tem um sonho. Mas depois que ele começou a usar taser com alunos de oito a 10 anos, pensei: "Nossa, acho que não". Aí, comecei a recuar. Faz quatro anos que faço o curso e já faz uns quatro ou cinco anos que penso em entrar (para o Exército).
Ele pedia para a gente segurar uma lona, porque não deu para prender nas taquaras. Ele fez uma fogueira debaixo, no meio da gente, e começou tocar folha, pneus. No que o fogo subiu, a lona começou a cair, derretendo quente na gente.
ADOLESCENTE DE 16 ANOS
Participou do curso pré-militar
E tu ainda pensas em entrar para o Exército?
Menina – Sim.
E tu também?
Menino – Quero entrar para a engenharia militar.
Menina – Só que desgastou um pouco. Ele prejudicou a gente.
Ele dizia que para entrar no Exército precisava fazer este curso?
Menina – Ele falava que aquilo lá era uma base do que tu vais passar lá dentro (no Exército).
Menino – Quando alguém entrava no quartel, ele falava: "O Comandos forja alunos".
Procurado, o Exército e manifestou por meio de nota. Confira a íntegra:
"O Comando Militar do Sul informa que o Exército Brasileiro não tem convênio com quaisquer cursos preparatórios para a carreira militar. O instrutor citado na reportagem prestou serviço militar como soldado, no ano de 2013, no 3º Batalhão de Polícia do Exército, sendo licenciado ao final do ano de instrução, por conclusão do Serviço Militar Obrigatório. O tempo passado no Serviço Militar Obrigatório não o habilita a oferecer qualquer tipo de treinamento para adolescentes. Por ser um cidadão sem vínculo algum com o Exército, qualquer prática ilícita deverá ser apurada pelos órgãos competentes."
Contraponto
Em depoimento, Roger Montanha de Moura Alcantara, 23 anos, disse que fazia as atividades de maneira rígida para simular o treinamento militar e não entendia como ilegal seus atos. Ele responde em liberdade pelos crimes de tortura, corrupção de menores e estelionato.