Adolescentes amarrados em paus de arara, passando por testes com punição de choque elétrico, sufocamento com toalhas, sendo obrigados a matar passarinhos, comer sua carne e beber o sangue da ave. Essas são as denúncias que a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Canoas tem sobre treinos que eram feitos em um curso preparatório para carreira militar, organizado no município.
O delegado Pablo Rocha diz ter provas em vídeo e fotos das torturas, que foram registrados por familiares das vítimas. Os fatos chegaram ao conhecimento da Polícia Civil em agosto deste ano, após denúncia do pai de um adolescente.
Naquele mês, agentes da delegacia entraram em contato com familiares de participantes do curso para solicitar que registrassem as atividades. Parte dos parentes, inicialmente, considerava corretas as práticas do instrutor. Com o tempo, foi percebido que havia algo equivocado e os pais concordaram em gravar os vídeos. Com isso, os policiais tiveram acesso ao material sobre os abusos.
O curso pré-militar é organizado por Roger Montanha de Moura Alcantara, 23 anos, egresso do Exército. O homem foi ouvido pela Polícia Civil e confirmou a autoria dos fatos. Em depoimento, Alcantara disse que fazia as atividades de maneira rígida para simular o treinamento militar e não entendia como ilegal seus atos. Ele não chegou a ser preso, mas a Polícia Civil pediu à Justiça medidas cautelares, para impedir que ele retorne a ministrar cursos para adolescentes.
De acordo com o delegado Rocha, o curso já havia sido investigado em 2014, após um adolescente machucar uma das pernas durante uma corrida. À época, o responsável pela preparação — que não teve o nome divulgado — foi indiciado por lesão corporal culposa. Desde então, não havia novas denúncias sobre o caso, até que o pai de um adolescente procurou a delegacia.
— Quando fotos e imagens chegaram, fiquei estarrecido e preocupado por não ter intervindo antes. No decorrer da investigação, percebemos que o curso poderia ter causado algo grave a algum adolescente, talvez até a morte. Apesar de não ter como resolver tudo, me senti responsável no momento em que comecei a investigar — detalha o delegado.
De acordo com o policial, pelo menos 200 adolescentes participaram do curso, com idades entre 13 e 17 anos. Todos devem ser ouvidos no decorrer do inquérito, que se encontra na fase de investigação.
— O adolescente que nós temos uma ampla prova tem 13 anos e afirma que recebeu soco no rosto por parte do instrutor como medida punitiva, por desrespeito. Esse mesmo adolescente afirma ter tomado choque elétrico, e que foi arremessado contra ele gás de pimenta. É o mesmo que foi colocado no pau de arara e que foi obrigado a tomar o sangue da ave — descreveu o delegado sobre o depoimento de uma vítima que foi ouvida.
O ex-militar de 23 anos deve ser indiciado pelos crimes de tortura, corrupção de menores, já que obrigada adolescentes a cometer crimes entre si, e ainda estelionato — já que teria organizado a venda de rifas para pagar o aluguel de sítios em Canoas e Gravataí, onde teriam ocorrido treinamentos. Em um segundo momento, o policial não descarta responsabilizar pessoas que ajudavam na organização dos cursos.
A polícia ainda afirma que o mesmo curso, chamado Comandos, tinha atuação em Novo Hamburgo e Caxias do Sul, e não se descarta ampliar a investigação para outras cidades.
"Mãe me relatou chorando", diz delegado
Segundo o delegado, uma das situações que mais chocou policiais envolvidos na investigação foi a de um adolescente deixado suspenso em uma trave a cerca de 1m50cm do chão na frente de outras 20 crianças. As mãos e os pés estavam amarrados com plástico.
— Uma mãe me relatou chorando que o filho dela havia sido pendurado no pau de arara. Imagina um adolescente ficando de ponta cabeça perante vários outros adolescentes, sendo ensinada técnicas de tortura como exemplo a outros adolescentes. É um absurdo, é inimaginável — diz o investigador.
Em outra, um menino de 13 anos e uma menina de 14 teriam sido obrigados a comer os restos de um pássaro, que havia sido morto minutos antes. O garoto teve de arrancar a cabeça do animal e tomar o sangue, enquanto a adolescente teve de comer a carne crua.
Há denúncias da obrigação de ingestão de comida podre. O instrutor prepararia um caldo com carne estragada e comidas foram da data de validade e daria aos adolescentes.
Além disso, a polícia relata que não havia acompanhamento de médicos, ambulâncias e sequer profissionais de educação física nas atividades.
Curso suspenso após pedido da polícia
A pedido da Polícia Civil, a Justiça obrigou que o curso fosse suspenso até o final da investigação, o que deve ocorrer em até 15 dias. A delegacia também cumpriu mandado de busca e apreensão na casa do instrutor e apreendeu armas de pressão que seriam usadas para atirar contra os adolescentes durante corridas. Além disso, máscaras usadas para aterrorizar os participantes também foram recolhidas.
O Ministério Público também atua no caso. Uma ação civil pública foi aberta pelo órgão para reparar os danos aos jovens.
Em nota, o Exército afirmou que "não tem convênio com quaisquer cursos preparatórios para a carreira militar". O Comando Militar do Sul também disse que o homem não está apto para oferecer qualquer tipo de treinamento.
Confira na íntegra a nota do Exército:
"O Comando Militar do Sul informa que o Exército Brasileiro não tem convênio com quaisquer cursos preparatórios para a carreira militar. O instrutor citado na reportagem prestou serviço militar como soldado, no ano de 2013, no 3º Batalhão de Polícia do Exército, sendo licenciado ao final do ano de instrução, por conclusão do Serviço Militar Obrigatório. O tempo passado no Serviço Militar Obrigatório não o habilita a oferecer qualquer tipo de treinamento para adolescentes. Por ser um cidadão sem vínculo algum com o Exército, qualquer prática ilícita deverá ser apurada pelos órgãos competentes."