A partir desta quinta-feira, a representação das famílias das vítimas do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, em 27 de janeiro de 2013, terá o reforço do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS), Ricardo Breier, 51 anos. Breier irá se somar à acusação no recurso especial que será apresentado pelo Ministério Público estadual (MP-RS) ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
Há um mês e meio, o 1º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS) aceitou o recurso da defesa dos quatro acusados e afastou o julgamento pelo júri popular. Com esta decisão, os donos da boate Elissandro Spohr (o Kiko), Mauro Hoffmann e os músicos Luciano Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos serão julgados por um juiz criminal de Santa Maria. No batalha judicial no STJ, Breier terá o papel de assistente da acusação. Atuará principalmente em Brasília, defendo a tese de homicídio doloso – de que houve intenção de matar – para levar o caso ao júri popular. Abaixo leia trechos da entrevista.
Por que o senhor decidiu entrar no caso?
Sou advogado, e não presidente da OAB nesse caso. Na verdade, às vezes se mistura isso. A associação de pais e familiares das vítimas, o dr. Pedro (Barcellos Jr, advogado dos pais), os advogados anteriores entenderam que, frente a essa nova decisão (do 1º Grupo Criminal do Tribunal de Justiça, de não mandar os réus a Júri), há a intenção de fortalecer a questão jurídica desse procedimento. Não adianta, como dizem os pais, fazermos o memorial em homenagem aos mortos, relembrarmos socialmente o fato, se não estiver interligado, no mesmo nível, a questão jurídica e de responsabilidade. Parece que, nesse momento, houve, por parte da sociedade, de certa forma um aceite nesse tema. Neste momento, diante dessa desclassificação absurda (pelo TJ), cai para culpa (a acusação deixa de ser por homicídio doloso), isso dá uma queda. A gente sabe muito bem que temos de levantar esse jogo. A gente entra para somar e equilibrar esse jogo. A única forma de fazer isso é no STJ (Superior Tribunal de Justiça), de reverter essa decisão, que é um trabalho árduo.
O senhor acha possível dissociar o fato de ser presidente da OAB e advogado do caso?
Não tenho como fugir disso. Tenho uma história longa de atuação na área de direitos humanos. Sei que isso não vai ficar dissociado, mas tenho 28 anos de advocacia criminal. Claro que, agora, meu nome está associado fortemente à OAB pelas ações que temos feito na sociedade e para os advogados. Estamos tentando colocar na frente o advogado, depois vai vir isso (a presidência da OAB). Politicamente vai ajudar? Claro que ajuda, ninguém vai ser ingênuo e dizer que não. Ajuda, mas a gente não vai usar isso em um palanque, não vai usar isso para fazer coisas que não estejam de acordo com a nossa convicção nesse caso.
Qual será a sua linha de atuação a partir de agora?
Estamos analisando. O que tem, em um primeiro momento, é que ficou focado no incêndio: "Ah, o incêndio é culposo, ninguém está lá para colocar o fogo". Mas há uma série de concausas, como a gente chama no Direito Penal, que são causas que levam ao resultado. Não é o incêndio só. Se tivesse uma pessoa na boate e tu botasses fogo lá, não morreria ninguém. Agora, o que está claro para os denunciados, principalmente para os donos da boate, que são pessoas que vivenciam o comércio, naquela noite e em tantas outras noites, que aquilo ali estava fora do controle, a superlotação. Tu colocas superlotação, tiras os extintores, tem depoimentos alertando para que esse proprietário, o Kiko (Elissandro Spohr) e sua equipe, tomem providência, e eles não tomam? Tem o sinalizador, proibido de ser lançado em determinados locais, e as pessoas lançam. Isso é, no mínimo, omissão daqueles que estão denunciados, dos diretores e gestores dessa boate. Deveriam ter o devido cuidado. Quando, não têm, alcançam a consciência. E, alcançando essa consciência, podem, sim, prever e assumir os resultados. A omissão é deliberada: "Estou sabendo, mas não estou fazendo nada".
Então, o senhor acha possível, inclusive, trazer os agentes públicos de volta ao processo, por exemplo?
Não, em um primeiro momento não.
Mas há essa intenção?
Não, em um primeiro momento temos de fazer um trabalho de botar isso (os quatro réus) no Júri. Não posso misturar temas. Porque, se misturar, vamos para um lado e para outro. Temos de reverter uma perda: que é a competência por responsabilidade dolosa.
Como assistente de acusação, o senhor vai trabalhar com o Ministério Público (MP). Ao mesmo tempo, está representando os pais, que têm sérias divergências com os promotores do caso. Como será possível essa relação?
Vamos conversar com o MP. Tem de saber dividir as responsabilidades e competências de cada um.
Mas os pais e o MP estiveram em lados opostos em boa parte do tempo.
Em um determinado momento. Isso tem de ser superado nesse momento sob pena de não termos os êxitos necessários. Temos de somar esforços, ainda que seja duro, difícil.
Há quem acredite que o MP errou ao acusar os réus por homicídio doloso e não culposo no início do processo. O senhor não fará essa crítica, então?
Não, tenho de dizer que os culpados pelo acontecimento são os denunciados, que têm de responder dolosamente. Isso é o que tenho de fazer agora.
O senhor visualiza chances reais de reverter o processo no STJ?
Há precedentes no STJ de 100% mandando para Júri. Inclusive, casos de acidente de trânsito, em que se discute muito dolo e culpa. Sai daqui como culpa e chega lá vai para dolo. Estou convicto nisso.
Quando o senhor deve apresentar o recurso no STJ?
Mais dois a três meses. Tem de apresentar as razões, intimar defesa, são várias partes do processo, todos têm de ser intimados.
Se o STJ mantiver a decisão do TJ de livrar os réus do Júri, há risco de prescrição?
Altíssimo.
Isso o assusta?
Não. Na prática, em um caso como esse, quando está se aproximando a prescrição, o tribunal, por si só, encaminha os procedimentos. Em um caso desse, ocorrer prescrição seria a falência do sistema.
Voltando à questão do seu cargo na presidência na OAB, o senhor acha que os seus colegas, inclusive a defesa dos réus, podem entender a sua atitude como parcialidade?
Não. No cenário da advocacia isso é comum. Tenho feito audiências normais, tenho trabalhado normalmente. Sou presidente há dois anos, tenho 28 anos de advocacia. Vai ser até bom para o debate. Porque, de repente, muitos clientes pensam: "O Breier não está conseguindo atuar na advocacia, só está na OAB". Ajuda porque, na verdade, não é isso.
Sua atuação será focada em Brasília?
Sim. Para reverter isso (a decisão do TJ). Depois, para o Júri.
Como o senhor pretende lidar tecnicamente com sensação de impunidade por parte dos pais e o argumento de que não houve intenção clara de provocar as mortes?
Nunca tivemos unanimidade, nem maioria dizendo que é culpa. Vou trabalhar dentro do processo para demonstrar que essa maioria nunca se teve e colocar para o STJ que não se caracteriza a culpa e sim, dolo. O processo, o trabalho, a demonstração do que foi criado, estamos levando ao reexame do STJ. Estamos estendendo o debate. Temos uma Constituição que diz que em crimes contra vida é o Júri quem decide. Temos toda uma orientação jurisprudencial. O que o TJ fez foi uma intromissão na competência. O papel dele não é entrar no mérito desse tema.
Os pais manifestaram intenção de federalizar o caso, tirando da alçada da Justiça gaúcha o processo. Nesse momento, ainda há interesse?
Tem de se fazer avaliação disso. Temos de superar essa decisão do TJ. A gente não quer mais tumultuar. Queremos seguir um norte, colocar esse processo em um rumo. Temos de limpar a área e depois a gente vai indo.
Um dos argumentos da defesa é de que um dos donos da Kiss estava dentro da boate e, se tivesse intenção de matar, estaria, na prática, tentando suicídio. Como o senhor pretende provar o contrário?
Isso é coisa para fugir (da acusação). Há elementos importantes que dizem que ele (Kiko) tinha consciência e não tomou providências sobre a insegurança da boate. Nenhum avião cai por um motivo só. Não é só pela questão do incêndio, é sobre uma série de fatores que ele sabia. O que importa é que ele é responsável, tinha convicção e consciência sobre o que poderia acontecer. Não tomou as cautelas para minimizar um incêndio que poderia ocorrer lá. E é isso que vamos trabalhar a partir de agora. Essa é a tese majoritária de toda história desse processo. A ideia é construirmos um caminho sólido, direcionado e técnico, somado a um trabalho bem desenvolvido até aqui.