Por Felipe Pimentel
Historiador, professor e psicanalista
O horror que o nazismo produziu faz com que nem sempre estudemos a fundo seu funcionamento. Quantas vezes aprendemos que os nazistas defendiam os trabalhadores e a comunidade, atacavam burgueses e banqueiros, desprezavam o liberalismo e o socialismo, sem compreender como tudo isso era possível ao mesmo tempo? Ficamos nas frases vazias de "odiavam o liberalismo", mas "apoiavam o capital nacional alemão", sem entender os meandros de seu discurso. Entender esses meandros é o caminho mais seguro para impedir seu retorno.
De tempo em tempo, os neonazismos se levantam: uma ação isolada aqui, uma passeata acolá. A existência de um só nazista já é suficiente para nos preocuparmos – pois ele consegue fazer estrago. O nazismo como movimento já necessita mais condições para se efetivar, sendo duas essenciais: (i) caos social, desemprego, descontrole econômico, desabastecimento e carestia; e (ii) ameaça política, instanciada em algum grupo que ameaça o pouco de sociedade restante.
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Diante de uma realidade de caos social, surgem duas alternativas: ou a revolução completa do sistema, que foi historicamente sustentada pelo socialismo marxista ao longo do século 20; ou o nazifascismo, uma teoria político-social que crê que o caos se deve a uma desorganização do sistema, que, então, necessita ser posto em ordem. No período do Entre Guerras, a situação era perfeita. Havia esse caos, e a alternativa socialista oferecia o inimigo necessário à radicalização da alternativa "ordeira".
Nesse sentido, já podemos perceber a imposição de opormos uma alternativa à outra, não somente por serem opostos um ao outro politicamente (há grupos de oposição política que são idênticos em ideologia), mas porque seus caminhos e objetivos são diametralmente opostos.
Mas voltemos: como funciona o nazismo? É simples: a forma de resolver o caos exige a união das pessoas, que não estariam pensando no todo, só em si mesmas. As ações individualistas estariam na contramão da construção da sociedade ordeira, aquela que possui ideais comuns; desse modo, quem age pelos próprios valores está impedindo a formação de um coletivo com valores compartilhados. Os trabalhos individualistas, os rentistas, os financistas, os herdeiros, que pensam só no ganho fácil e no seu sucesso, são inimigos. Os trabalhadores braçais, não. Estes produzem a riqueza e os insumos básicos que fazem a sociedade crescer. Os cidadãos que julgam que as leis só servem para os outros atrapalham a vida comunitária. Com essas considerações, pode-se compreender porque o nazismo conseguia desprezar "os banqueiros", "os burgueses" e o liberalismo e interferir na vida privada das pessoas; ao mesmo tempo em que defendia os trabalhadores e a comunidade.
Ora, até aí não há nada muito grave no discurso: muitos defendem os trabalhadores, atacam o capital, criticam banqueiros e individualistas e exigem respeito às leis compartilhadas. Isso mostra como o início do discurso nazista é "palatável" e, por isso, mais perigoso. Quando ele começa a se tornar um monstro verdadeiro e claro?
Há algo oculto no que apresentei, que os filósofos normalmente percebem. A saber: que valores compartilhamos? Quem decide que valores são esses? E que valores compõem a sociedade? Não deveria haver tantos valores, pelo menos na vida pública, quanto indivíduos? Pois, então, eis aí o início do totalitarismo.
O nazismo se transforma em totalitarismo quando define o que é o grupo e, daí em diante, quais são seus valores. Se tomo um conjunto de pessoas (os habitantes da Alemanha), sempre heterogêneo (composto de pessoas de várias etnias e alemães de diferentes moralidades), tenho duas consequências: todos aqueles dentro do conjunto que não pertencem àquela definição estão excluídos, e, segundo, todos os que, ainda que possuam a característica de pertencer ao conjunto (são alemães), mas não comungam daquilo que defini como o que significa ser daquele conjunto (não praticam a moralidade que é ser alemão) são membros que atrapalham o conjunto e devem ser corrigidos ou afastados. É nesse sentido que o discurso nazista caminha necessariamente para a xenofobia e a intolerância. E, dentro da generalidade que apresento, podemos perceber porque ele pode se replicar em qualquer cenário, só mudando quem é o elemento externo – o judeu, o muçulmano, o imigrante qualquer.
Não só a possibilidade de ser reatualizado assusta no nazismo. Mas, em última instância, porque as ferramentas humanas que seriam capazes de dissuadir alguém são inúteis perante o nazismo, já que ele é fruto de pura estupidez – a combinação entre ignorância e ódio. Mesmo nossas defesas mais condenáveis, como o desprezo e a repugnância, parecem fazer o nazista mais se engrandecer do que diminuir. É um risco e, para que não fiquemos desamparados diante de tal ameaça, saibamos que só uma força os seres humanos criaram contra ele: o olhar amparador de quem vê no próximo um indivíduo com prazeres e dores particulares, e não o membro de um grupo, e seu acolhimento é a própria solidariedade do cidadão – sem raça, cor, classe, ideologias ou partidos, vestido somente de humanidade.