O clima era de diversão e fraternidade para os cinco meninos de 11 a 13 anos que haviam ido passar o final de semana com o padre Marcos Roberto Ferreira no distrito joinvilense de Pirabeiraba. Desde sexta-feira, reinava a harmonia na casa paroquial da igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde estavam hospedados. Foram dois dias de brincadeiras, conversas e Netflix. O sacerdote dormia em um quarto, os jovens visitantes em outro. No domingo, três adolescentes foram embora. Por insistência do vigário, dois ficaram para mais uma noite – que até hoje, quase um mês depois, parece ainda não ter acabado para eles.
Um dos meninos, Tim (nome fictício), 13 anos, conta que eles jantaram, assistiram a um filme e se recolheram quando era quase 1h. Desta vez, comunicou o pároco, todos iriam se deitar na cama de casal, na suíte da residência. O adulto no meio, um menino de cada lado. À direita, o amigo de Tim logo adormeceu, um sono pesado. Ele, à esquerda, ainda tentava pregar os olhos quando foi surpreendido por uma língua em sua orelha. Achou que estava sonhando – "não era possível o padre estar fazendo aquilo" – e se afastou.
– Deu uns 10 minutos e ele me abraçou pelas costas e começou a alisar minha barriga. Tentou mexer no meu pênis, tirei a mão dele. Tentou de novo, tirei de novo. Na terceira tentativa, ele botou a mão com força e ficou me masturbando por uns dois, três minutos – diz.
Para se desvencilhar do assédio, Tim disse que precisava fazer o número 2. Assim que se viu sozinho e seguro no banheiro, trancou a porta e acessou o WhatsApp no celular. Às 3h15min, mandou a primeira mensagem para o pai. Em poucos segundos, outra. Dois minutos depois, mais duas. E nada de os dois risquinhos ficarem azuis, indicando que tinham sido lidas. Resolveu ligar. Ao ser atendido, desligou. Acordado pelo telefonema, o homem viu que o filho – identificado na lista de contatos do celular pelo nome seguido da inscrição "amor do PAI" (assim mesmo, em maiúsculas) – havia lhe enviado quatro mensagens. "Oi, fala", teclou.
– O padre me judiou – foi a resposta, completada com um emoji chorando e outro espantado.
Em 11 balõezinhos, Tim contou que o padre estava "meio estranho" e descreveu o que teria ocorrido. O pai quis saber se acontecera algo mais e o orientou a permanecer no banheiro, pois já estava indo buscar ele e o colega. O filho disse "não, só ficou mexendo lá" e que estava com medo, finalizando com uma selfie com cara de choro:
– Vem logo.
O pai sentiu as pernas amolecerem. Iria até lá sem avisar a esposa, pegar os garotos e "matar esse cara". Mas se a mulher acordasse e não o visse na cama, pensou, aí é que ficaria assustada. Cutucou a companheira e, mal ela reagiu, ainda grogue de sono, mostrou-lhe o celular. Ela despertou no ato e imediatamente entrou em contato com a mãe do amigo de Tim, com quem ficou trocando mensagens enquanto o marido foi resgatar as crianças.
Na casa paroquial, o padre falou para Tim sair do banheiro. Apesar da recomendação do pai, o menino abriu a porta e se sentou encolhido no chão, em um canto da suíte. O sacerdote perguntou se ele tinha ligado para alguém. O garoto admitiu que o pai estava vindo para o levar para casa. O pároco lhe ofereceu "um chazinho" e fez menção de abraçá-lo, no que foi repelido. Transtornado, dirigiu-se até uma espécie de capelinha na própria residência e começou a rezar e a chorar. Implorava pelo perdão do garoto, sem sucesso.
O menino aproveitou a distração do padre para chamar o colega, que dormia como uma pedra. O amigo só acordou com a ligação da mãe, com a desculpa de que o pai de Tim tinha ido levar a caçulinha ao hospital em Joinville e aproveitaria a viagem para já pegá-los. Ao ouvir do amigo o verdadeiro motivo da despedida antecipada, relutou em acreditar. Mesmo assim, arrumou suas coisas e ficou com ele na sala, à espera do pai.
Com trânsito normal, os 73 quilômetros de São Francisco do Sul, onde moram, até Pirabeiraba, são percorridos em cerca de uma hora e 15 minutos. Devido ao pouco movimento àquela hora da madrugada e movido por um sentimento que não consegue definir, o pai venceu o trajeto na metade do tempo.
– Não lembro nem o caminho que fiz. Só pensava em salvar meu filho. Nunca tinha ido lá, mas ao ver a casa ao lado da igreja, tive certeza de que era aquela.
Ao avistar o carro do pai, Tim saiu correndo em direção ao veículo. Ele abriu a porta e o filho o abraçou, entre tremores e soluços. O colega ainda se despediu do padre antes de embarcar. De camiseta, bermuda e chinelo, o padre também apareceu e perguntou se o pai gostaria de conversar um pouco. Diante da negativa, entrou na residência e fechou a porta. Quando chegou em casa, "branco, com os lábios roxos, chorando muito", lembra a mãe, Tim contou a história toda com detalhes.
– Mãe, tô com muita raiva e nojo do padre Marcos. Acho que a gente devia falar para a polícia.
Na quarta-feira, 24 de maio, os pais de Tim e de mais três meninos que teriam sido abusados pelo padre Marcos o denunciaram à Polícia Civil de São Francisco do Sul. De acordo com o delegado Marcel Araújo de Oliveira, os depoimentos dos adolescentes foram tomados por um psicólogo policial, "que consegue fazer a criança se abrir de maneira mais plena e sem dor". Nas investigações, diz ele, foi descoberta uma quinta vítima.
– Um rapaz de 17 anos, que tinha 13 quando foi molestado, o que nos leva a crer vão surgir outros casos – diz o delegado.
Foram ouvidas também pessoas da paróquia em que o padre atuava na cidade antes de ser transferido para Pirabeiraba. Conforme Marcel, as apurações revelaram que era comum o sacerdote dar presentes ou dinheiro para os garotos "ficarem quietos". Há relatos ainda de que o padre teria sido flagrado com jovens em situações comprometedoras, como com a mão dentro da calça deles.
– Até o momento não há nenhuma indicação de conjunção carnal, mas reunimos provas suficientes de que houve outras formas de abuso que configuram o estupro de vulnerável.
Após duas semanas de trabalho, em 7 de junho, o delegado concluiu que tinha elementos suficientes para pedir a prisão temporária do padre. O mandado chegou no dia 9, na hora do almoço. Às 14h, Marcel e dois policiais foram até a casa dos pais do padre, no bairro Jardim Paraíso, em Joinville. Eles sabiam que ele estava lá desde que a diocese do município, que coordena as paróquias da região, suspendeu-o por causa das denúncias. Temendo que o sacerdote pudesse fugir, a polícia estava monitorando seus passos. Ao receber a voz de prisão, o religioso reagiu com indiferença.
– Ele foi solícito, não perguntou nada. Apenas pediu para telefonar para o advogado e pegar um casaco. Acho que a mãe dele, uma senhora com problemas de saúde, nem percebeu que o filho estava sendo preso. O pai notou: quando o levávamos, disse que foi uma fraqueza da carne, que poderia ter acontecido com qualquer um – comenta.
Na viatura, algemado para a segurança dos policiais e de si próprio, o padre permaneceu em silêncio. O delegado ainda tentou arrancar-lhe alguma declaração:
– O senhor tem ideia de por que está sendo preso?
– Sim.
– Não quer falar mais nada?
– Não, só respondo em juízo.
Na delegacia, o advogado Valdemar Dias já aguardava pelo cliente. Marcel deixou os dois a sós para conversarem e em seguida foi coletar o depoimento do padre. Novo silêncio. Para o delegado, não restou dúvida: o suspeito não tem a menor intenção de colaborar com as investigações. O padre foi levado à Unidade Prisional Avançada de São Francisco do Sul. Na próxima semana, Marcel pretende pedir a prisão preventiva. Segundo ele, já existem indícios para o inquérito virar um processo criminal na Justiça. Se condenado, a pena prevista é de oito a 15 anos.
– Os heróis são as vítimas, os garotos. Falei isso para os pais deles. Me espanta ver outros pais da comunidade indignados, perguntando por que eles estavam fazendo isso com o padre. Ora, eles estão defendendo não só os filhos deles, como os filhos desses outros pais e de estranhos.
A prisão do padre Marcos deixou a comunidade perplexa – e um misto de raiva e decepção nos pais das supostas vítimas. Durante os cinco anos que passou em São Francisco do Sul, conheceu muito bem cada fiel e conquistou todos com o seu carisma. Para a vice-presidente da associação dos moradores do bairro em que fica a paróquia, ele era "nota 10", tanto como religioso como quanto gestor. Quando ela soube das acusações, ficou abismada.
– Até hoje, pergunto a Deus: o que aconteceu com o nosso padre? Uma pessoa tão boa, que fraqueza que deu nele para fazer uma coisa dessas? Ele abraçava todo mundo, beijava um, abraçava outro. Saía muito com as crianças, levava a piazada para passear, estava sempre alegre. Não tinha ar condicionado na igreja, o microfone era ruim. Ele arrumou tudo, fez calçamento, construiu o muro, reformou o banheiro.
Outra moradora do bairro endossa:
– Para mim, parecia um filho meu sendo algemado. É muito triste ver um padre novo, um padre excelente assim, preso. A gente fica revoltada, ninguém esperava isso dele. Tem quem diga que ele não merece. Mas a gente não tem como dizer se é verdade ou mentira. Quem sabe é Deus. Se ele merecer, tem que pagar. Ninguém esperava isso dele.
Nascido há 36 anos em uma família de 13 irmãos de Serra da Palmeira, localidade no interior da cidade de Pitanga (PR), a 360 quilômetros de Curitiba, desde cedo Marcos Roberto Ferreira demonstrava forte religiosidade. Rezava o terço em casa, ia às novenas de Natal na vizinhança, participava das missas na igreja Nossa Senhora da Paz aos domingos. Em 1988, mudou-se com os pais para Joinville, onde fez a primeira comunhão e continuou atuante no catolicismo. Durante oito anos, integrou o grupo Jovens Unidos a Serviço de Cristo (Jusc) e foi também catequista e missionário do dízimo.
Em 2000, participou do estágio vocacional e foi aceito no Seminário Divino Espírito Santo. Na instituição, amadureceu a espiritualidade e se preparou para a faculdade de Filosofia, cursada em Brusque entre 2003 e 2005. Em 2006, serviu ao Santuário Senhor do Bom Jesus, em Araquari, auxiliando nas celebrações. Iniciou-se nos estudos teológicos em 2007, em Florianópolis e, em março de 2011, tornou-se diácono – na hierarquia católica, o estágio pré-sacerdócio, habilitado para pregar o Evangelho, conduzir batismos e oficiar matrimônios.
Em setembro do mesmo ano, Marcos foi ordenado padre – o único de uma turma de 28 alunos que começaram com ele – com a missão de incentivar os jovens a se aproximarem de Deus. Rezou sua primeira missa na comunidade Nossa Senhora dos Migrantes, no bairro em que moram seus pais. Em 2012, foi trabalhar no Santuário Nossa Senhora Aparecida, em Mafra. Naquela cidade, construiu a imagem de um padre zeloso com os doentes e com as famílias dos enfermos, além de ajudar muito nas pregações e celebrações, conforme o enalteceu um colega de batina na imprensa local por ocasião de sua transferência para São Francisco do Sul, 15 meses depois.
Na paróquia, sua reputação de bom homem só fez crescer. Tanto que conquistou a confiança dos pais para permitirem passeios e, eventualmente, até pernoites de seus filhos com ele. Vínculos que, a despeito da mudança para Pirabeiraba, em abril – por questões administrativas, sem nenhuma relação com os crimes dos quais é acusado, garante a diocese –, o padre fez questão de manter. Com a família de Tim, não foi diferente.
– Na primeira vez que convidou meu filho para dormir na casa dele, eu disse que não tinha o hábito de deixá-lo pousar fora de cara porque ele era meu tesouro. O padre disse: o meu também. Achei esquisito, mas relevei porque no dia seguinte eles (o padre e uma gurizada) iriam a um parque aquático – diz a mãe do garoto.
Ressabiada, ela recomendou a Tim que não deixasse ninguém "mexer no pinto nem na bunda dele". Na volta, perguntou onde ele havia dormido. O menino disse que fora em um colchão no chão. Na segunda vez, o pároco chamou o filho dela e outros rapazes para passarem a tarde na cada dele para se despedir, pois estava trocando de paróquia. A mulher, católica de ir a três missas por semana, sentia-se culpada por estar suspeitando do padre. Por isso, tratou de tirar os pensamentos maldosos da cabeça quando o padre apareceu com um novo convite para Tim conhecer sua morada no distrito de Joinville.
Na sexta-feira, o padre Marcos tinha uma missa para rezar em uma comunidade próxima à casa da família de Tim. O combinado era ele pegar o menino e o amigo e, no final da tarde de domingo, trazê-los de volta ou botá-los em um ônibus rumo a São Francisco. Na hora marcada, o pároco apareceu na frente da casa de Tim com três adolescentes de Pirabeiraba, que também iriam passar o final de semana com ele. Os dois garotos embarcaram no Fox do padre e se foram. No dia de ir embora, o padre telefonou para a mãe de Tim: não iria conseguir levá-los, faria isso na segunda-feira pela manhã.
– Ele vinha aqui, tomava café, comia com a gente, nos aconselhava. Nós o tínhamos como uma pessoa da família, mesmo. E o amávamos de todo o coração – admite a mãe.
O ocorrido com o filho fez com que fichas caíssem e episódios anteriores ganhassem novos significados para aqueles que conviveram com o religioso. Uma mulher que não quis se identificar, por exemplo, diz que o padre já havia perguntado se ela notara que seu filho de 12 anos tinha tendências homossexuais. Mais tarde, contou que o guri tentara tocar em suas partes íntimas. O delegado Marcel crê que, considerando o histórico do acusado e a quantidade de jovens com que ele lidava, novas vítimas irão surgir. O celular do padre passa por uma perícia para averiguar se há conversas ou imagens que comprovem as denúncias.
Atrás das grades, o pároco continua de boca fechada. "Existem fortes fundamentos para que o padre Marcos seja colocado imediatamente em liberdade, não havendo motivos plausíveis para a manutenção da sua segregação. Sobre o mérito, reservamo-nos a apenas discutí-lo em juízo, em eventual ação penal. (...) Para concluir, podemos afirmar que o padre Marcos sempre desenvolveu um trabalho com muito zelo perante todas as comunidades que passou. Quem o conhece de verdade sabe (...) que ele é um excelente padre e uma excelente pessoa", declarou em nota o outro advogado que o defende, Karlo Murillo Honotório.
– Eu não quero que meu filho cresça e ache que não o protegemos. Se a gente ficasse quieto, não estaria fazendo jus ao amor que sentimos por ele – reflete a mãe de Tim.
Colaborou Marco Antônio Mendes, da RBSTV Joinville