Em 40 anos servindo à Marinha, o vice-almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva tarimbou-se em operações sigilosas. Mentor do programa nuclear brasileiro durante quatro governos sucessivos, gerenciou contas secretas bilionárias, manteve contatos reservados com cientistas estrangeiros, importou equipamentos vetados ao Brasil por potências atômicas e foi monitorado por agente da CIA que, durante dois anos, morou em um apartamento colado ao seu.
Tamanha eficácia legou ao país a construção de ultracentrífugas para o enriquecimento de urânio e o desenvolvimento de uma tecnologia nacional para a propulsão nuclear de submarinos. Aclamado pelas Forças Armadas e pela comunidade científica, recebeu oito medalhas militares e dezenas de honrarias. Chamado de lenda viva na caserna e na academia, encerrou a carreira em 2015, quando três homens armados entraram em sua casa.
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Segunda ação em desdobramento da Lava-Jato que teve o ex-presidente da Eletronuclear como alvo
O relógio recém marcara 6h em 28 de julho, e o sol ainda despontava no horizonte quando uma viatura da Polícia Federal (PF) estacionou em frente ao número 75 da Rua Ipanema, uma alameda da Barra da Tijuca, no Rio, distante poucas quadras da praia. Subiram ao apartamento 1.501 e foram recebidos pela empregada doméstica Kelly Guimarães, a quem perguntaram pelo dono da casa.
– Está dormindo – disse.
Orientada a acordá-lo, voltou à sala com semblante petrificado. Quando os policiais se dirigiram ao cômodo, a porta estava trancada. Lá de dentro, Othon avisou que era vice-almirante e exigia ser tratado com respeito. Alertado de que havia mandado de busca e apreensão a ser cumprido, exigiu a presença de um almirante, posto superior ao seu na hierarquia militar.
– Vou meter bala – ameaçou Othon.
Abrigados nos demais cômodos do amplo apartamento, os agentes sacaram as pistolas. Chefe da operação, o delegado Wallace Soares deu dois chutes na porta e disse que iria arrombá-la. Ouviu-se então o barulho da fechadura. Othon recebeu ordem para sair devagar com as mãos na cabeça. Mal se abriu um pequeno vão, o militar atracou-se aos agentes.
A pancadaria só acabou com o vice-almirante algemado, sentado ao chão.
Como chefe da Eletronuclear, criou esquema de corrupção em Angra 3
"Mesmo imobilizado, o senhor Othon Luiz Pinheiro da Silva continuou inquieto, gritando que não podíamos agir daquela forma, que ele é um vice-almirante da Marinha, que deveria haver no mínimo um vice-almirante no local. Expliquei novamente que se tratava de um mandado expedido pela Justiça do Paraná e que Polícia Federal estava no local para cumpri-lo", escreveu o delegado em relatório para a coordenação da Lava-Jato.
No quarto, os agentes apreenderam seis armas: uma pistola .40 e um revólver calibre 38, em nome do militar, além de um revólver Colt 357, um pistola Glock 9 mm, um Taurus 38 e uma pistola Bayard calibre 6.35, todas sem registro. O mandado decretava ainda a prisão temporária de Othon, por suspeita de recebimento propina na usina nuclear Angra 3.
Aos 76 anos, militar presidia a Eletronuclear desde 2005. Havia sido um retorno triunfal. À frente de posto estratégico e de orçamento bilionário, Othon jamais desfrutara de tanto poder. Frequentava o Planalto com assiduidade, confabulava com ministros e presidentes de empreiteiras. Indicou dois comandantes da Marinha e tornou-se amigo de Dilma Rousseff, de quem quase foi chefe da Casa Civil após a demissão de Gleisi Hoffmann, em 2014.
Na Eletronuclear, sua missão foi retomar as obras de Angra 3, colosso energético projetado para gerar 12 milhões de megawatts-hora por ano, capacidade suficiente para abastecer Brasília e Belo Horizonte. Para tanto, evitou uma nova licitação e reativou um antigo contrato assinado em 1983 com a Andrade Gutierrez. De 2005 a 2015, Othon assinou 13 aditivos com a construtora, no valor de R$ 3 bilhões.
Ao mirar o setor energético, a Lava-Jato encontrou na estatal um "gigantesco esquema criminoso", envolvendo um cartel formado por 16 construtoras, entre as quais gigantes como OAS, Odebrecht, Camargo Corrêa e Mendes Júnior. Presos, executivos disseram que Othon teria começado a pedir propina antes mesmo do começo das obras na usina. Com uma das filhas, foi acusado de montar esquema de lavagem de dinheiro para receber R$ 4,5 milhões em suborno, com empresas laranjas no Brasil e offshores no Exterior.
Condenado por seis crimes, nega as acusações e recorre no TRF2
Em agosto de 2016, um ano após ter a casa varejada pela PF, Othon recebeu a maior pena individual entre todos os 144 condenados na Lava-Jato: 43 anos, cinco meses e 50 dias. Ao final das 159 páginas em que descreve os crimes cometidos por Othon, o juiz federal Marcelo Bretas considerou-o culpado por corrupção, lavagem de dinheiro, organização criminosa, evasão de divisas e embaraço à investigação. Para o magistrado, o militar, "portador como poucos de segredos de Estado num tema que sempre foi muito caro às maiores potências mundiais, abriu mão de sua honrada história de estudos e trabalhos à nação brasileira para obter vantagens indevidas, agindo com desprezo pela instituição que o acolheu com honras de chefe máximo."
Othon recorreu ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Nega as acusações e disse que o dinheiro recebido de empreiteiras financiaria projeto de turbinas para gerar energia a partir de pequenas quedas d'água.
Mestrado em Engenharia Nuclear pelo MIT
Em 1974, o ministro da Marinha, Geraldo Henning, estava fascinado pela tecnologia nuclear. Recém chegado de um viagem da Bahia ao Rio em um submarino atômico americano, relatou a experiência ao almirante Eddy Espellet. O interlocutor revelou que havia designado um capitão-de-corveta para acompanhar, no Reino Unido, a construção de submarinos Tonelero. Sugeriu então enviar o jovem Othon Luiz Pinheiro da Silva, em quem enxergava "liderança, iniciativa e entusiasmo", para estudar o tema nos Estados Unidos.
Ao retornar, quatro anos depois, Othon lustrava o currículo com mestrado em Engenharia Nuclear pelo prestigiado Massachusetts Institute of Technology (MIT). Mas a Marinha não sabia o que fazer com ele. Na semana seguinte ao desembarque, foi levado à sala do diretor-geral de Material da Marinha, almirante Maximiano da Fonseca.
– Você, que cursou esse negócio, quais as nossas chances de ter uma produção nuclear aqui no Brasil? – perguntou o oficial.
Líder de pesquisas militares, Othon geria contas secretas do governo
Othon pediu três meses para produzir um relatório. Findo o prazo, entregou um calhamaço no qual sugeria a criação de um programa para dominar o ciclo do combustível nuclear – tema de sua dissertação de mestrado no MIT – e a propulsão atômica de submarinos. A apresentação selou seu destino. Pelas duas décadas seguintes, presidiu diversos órgãos militares e civis, sempre dirigindo todas as pesquisas nucleares do governo.
– O papel do vice-almirante Othon é central no programa brasileiro de enriquecimento de urânio com ultracentrífugas. Criou novos materiais, geometrias, a divisão de cada componente. É uma tecnologia conhecida, faz parte do inconsciente coletivo científico. Mas há diferença entre saber que é possível fazer e efetivamente fazer. Ele fez – diz o pesquisador da USP Alexandre Ramos, pós-doutor pela Stony Brook University, de Nova York e autor de estudos de fissão-fusão nuclear.
Cortejado por cientistas, Othon viveu trajetória de thriller de espionagem. De 1983 a 1986, administrou uma das quatro contas secretas mantidas pelo governo para custear o programa nuclear. Para proteger o dinheiro da inflação, tinha aval do próprio presidente João Figueiredo para investir no overnight – aplicação renovada diariamente – e garantir correção monetária. A existência das contas foi revelada pela jornalista Tânia Malheiros, autora do livro Histórias Secretas do Brasil Nuclear. Segundo Tânia, a conta denominada Delta IV era usada por Othon para "pagamentos suplementares, espécie de caixa 2 do pessoal da máxima confiança da Marinha". Nos anos 1990, Othon se valeu da Guerra do Golfo para obter equipamento fundamental a suas pretensões. O Iraque havia encomendado à Alemanha uma máquina de última geração para produzir ultracentrífugas de fibra de carbono. Com a invasão do Kuweit pelos iraquianos, a entrega foi cancelada, e Othon convenceu um técnico alemão a vender a tecnologia. Em 1996, dois dias após o lançamento do livro de Tânia, Karl-Einz Schaab foi detido pela Polícia Federal porque havia mandado de prisão contra ele expedido pelo Supremo Tribunal Federal a pedido do governo alemão.
Expedientes heterodoxos levaram à aposentadoria a contragosto
Apesar dos avanços científicos, os métodos do vice-almirante incomodavam a Marinha. Sem autorização dos superiores, em 1993 ele contratou duas empresas chefiadas por oficiais da ativa e da reserva que colocaram mais de 400 pessoas trabalhando em projetos especiais da corporação. Logo após a contratação, desconfiou que estava sendo monitorado por um casal que vivia rondando sua casa, em São Paulo. Não teve dúvidas. Dirigiu-se ao carro onde a dupla estava e colocou uma pistola na cabeça do motorista. Eram o cabo Marcelo Ferreira Miranda e a segundo-sargento Kátia de Assis Guimarães, que investigavam Othon por ordem do Centro de Inteligência da Marinha.
Na mesma época, o oficial esteve na mira do serviço secreto americano. Morava no apartamento 191 de um prédio no bairro dos Jardins. Logo abaixo, no número 181, vivia Ray H. Allard, oficialmente um agente de informações do consulado dos Estados Unidos na cidade. Relatório confidencial da Marinha diz que Allard desocupou o imóvel em 26 de julho de 1994. "Seu retorno pode ter objetivo de eliminar provas do constrangimento que causou" a Othon, diz o documento.
Havia intrigas demais na caserna, e o vice-almirante acabou retirado de cena. Ganhou do presidente Itamar Franco a Grã Cruz da Ordem do Mérito Científico Nacional e foi mandado para casa pelo ministro da Marinha, Ivan Serpa. Na reserva a contragosto, escondeu centenas de documentos, entre os quais contratos, detalhamento de despesas e planilha na qual contabiliza ter gasto US$ 668 milhões no período em que liderou o programa nuclear.
Revoltado com o expurgo revestido de homenagem, prestou concurso para retornar à Comissão Nacional de Energia Nuclear. Tirou primeiro lugar, mas jamais foi nomeado. Othon só voltaria a ter destaque no programa nuclear brasileiro com o convite do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para assumir a Eletronuclear em 2005. Hoje cumpre pena em uma base da Marinha em Duque de Caxias.
Othon apresenta currículo respeitável
Formação acadêmica
– 1960 – Oficial de Marinha do Corpo da Armada
– 1966 – Engenharia Naval. Cursou simultaneamente as especialidades de Arquitetura Naval e Máquinas
– 1978 – Mestrado em Engenharia Mecânica pelo MIT
Atuação profissional
– Atingiu o posto de vice-almirante no corpo de engenheiros e técnicos navais, o mais alto posto da carreira naval para oficiais engenheiros.
– Fundador e responsável pelo programa de desenvolvimento do ciclo do combustível nuclear e da propulsão nuclear para submarinos de 1979 a 1994.
– Autor do projeto de concepção de ultracentrífugas para enriquecimento de urânio.
– De 1982 a 1984 foi diretor de pesquisas de reatores do Ipen.
– Autor do projeto de concepção da instalação de propulsão nuclear para submarinos brasileiros e do reator de teste, protótipo de terra dessa instalação.
– Coordenador de projeto e desenvolvimento dos laboratórios de grande porte, necessários à validação experimental de equipamentos e componentes do sistema de propulsão nuclear para submarinos, assim como projeto e desenvolvimento desses equipamentos e componentes e sua fabricação na indústria brasileira.
– Diretor-presidente da Eletrobras Eletronuclear.