Com a arrecadação em queda, repasses estaduais em atraso e verbas defasadas da União, prefeituras do Rio Grande do Sul enfrentam dificuldades para manter as equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Considerada a principal ação na área de atenção básica no país, a iniciativa criada em 1994 é mais uma na lista de convênios e programas federais que correm o risco de estagnar ou retroceder.
Segundo a Federação das Associações dos Municípios do Estado (Famurs), os prefeitos têm arcado com custos cada vez maiores, que passam de 60%. A situação é pior nas administrações que não entraram na Justiça para assegurar o repasse de verbas pendentes do Estado desde 2014. Nesses casos, desativar equipes, segundo o presidente da entidade, Luciano Pinto, é questão de tempo:
– Os prefeitos estão sobrecarregados. Não têm mais para onde correr.
Ao aderir à iniciativa, as prefeituras ficam responsáveis por operacionalizar o serviço, que contribui para reduzir filas em hospitais e pronto-atendimentos. Cabe a elas contratar os profissionais, oferecer estrutura física e transporte. União e Estado ajudam com incentivos financeiros, tanto para a implementação quanto para o custeio.
– No início do programa, os repasses da União cobriam, em média, 50% dos custos. O Estado e as prefeituras entravam com 25% cada. Só que, com o passar dos anos, isso foi mudando. Hoje, os municípios estão bancando 67% – estima Paulo Azeredo Filho, assessor técnico da Famurs para a área da saúde.
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Tabelas de repasse não levam em consideração diferenças regionais
A situação se agravou, segundo o presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, porque os valores básicos para custeio, repassados pela União, estão congelados desde 2012. Por exemplo: para equipes que contemplam assentados ou remanescentes de quilombos, são transferidos R$ 10,6 mil por mês. Levando em conta a inflação no período, o montante deveria ser de R$ 14,8 mil.
– A defasagem preocupa, porque temos gastos crescentes com luz, água, energia, insumos, combustível. Tenho dito aos secretários o seguinte: se conseguirem manter as atuais equipes, já será uma grande coisa – diz Diego Espindola, presidente do Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Rio Grande do Sul (Cosems-RS).
Diferenças regionais, que não são levadas em conta na tabela de repasses, tornam as despesas mais pesadas para administrações localizadas em pontos mais distantes do Interior. Dependendo da localidade, o salário de um médico, por exemplo, pode dobrar ou até triplicar em relação à remuneração paga na Capital. O gasto com gasolina, também. Isso porque as equipes, muitas vezes, precisam percorrer longas distâncias para atender as comunidades mais afastadas.
– As dificuldades existem de fato. Não é choradeira dos prefeitos. A questão é que a autonomia financeira da maioria das prefeituras é quase nula. A dependência em relação a recursos federais e estaduais é muito grande – aponta Álvaro Guedes, professor de Administração Pública da Universidade Estadual Paulista e ex-secretário municipal de Saúde de Araraquara (SP).
Para o especialista, também não podem ser descartados problemas de gestão, especialmente no caso de administradores que aderem ao programa de olho em votos, sem ter noção dos custos. Ainda assim, na avaliação dele, o que pesa mais é a pressão da população.
– É claro que existe o viés político, imediatista e eleitoreiro, mas também existe uma pressão social muito grande sobre os gestores. A população mais pobre não tem alternativa. Ou é atendida no SUS ou morre – pondera Guedes.
Por meio de nota, a Secretaria Estadual da Saúde informou, na última quinta-feira, que tem R$ 289,9 milhões em repasses pendentes para as prefeituras, relativos a 2014, 2015 e 2016.
Especificamente para a ESF, são R$ 111,2 milhões. Os valores são menores do que os contabilizados pela Famurs. Para a entidade, a dívida total é de R$ 340 milhões, sendo R$ 136 milhões relativos ao programa.Conforme a nota, "o Estado priorizou, neste ano, a quitação dos débitos existentes com as Santas Casas e hospitais filantrópicos", e a secretaria "busca solução, observando o atual contexto econômico, para equacionar as dívidas com os municípios".
Procurado por ZH, o Ministério da Saúde informou que os repasses para o custeio das ESF dos municípios do Estado estão regulares. Ressaltou que houve crescimento de 31% nos valores enviados nos últimos seis anos para o RS, passando de R$ 101,2 milhões, em 2011, para R$ 132,6 milhões no ano passado.
Carência se repetem em outros programas
A lista de programas ou convênios federais que se transformaram em motivo de angústia para os prefeitos gaúchos vai além da Estratégia de Saúde de Família. Entre os maus exemplos, estão as unidades de pronto atendimento (UPAs) e a construção de creches.
A principal razão das dificuldades é a falta de dinheiro para custeio ou, no caso das creches, a contratação, pela União, de construtora com problemas que não entregou as obras.
– Costumo dizer que cada novo programa que surge é como um Kinder Ovo, só que com surpresa desagradável dentro. Os prefeitos aderem e, depois, os repasses são congelados, as leis mudam, as coisas não funcionam – diz o presidente da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), Luciano Pinto.
À frente da Confederação Nacional de Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski vem orientando dirigentes em busca de conselhos a não aderirem aos programas federais, mesmo que a decisão tenha custo político.
– Os prefeitos acham que estão certos ao aderir, porque querem mostrar serviço, mas é uma furada. Depois, são eles que respondem pelos problemas – afirma Ziulkoski.
Atrasos ameaçam serviço em Charqueadas
Em Charqueadas, na Região Carbonífera, 12 equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) atingem 100% da população de 38,5 mil habitantes. Para manter o serviço, a prefeitura cobre mais da metade dos custos, que aumentaram no último ano em razão de atrasos em repasses federais e estaduais.
Ao todo, são 16 médicos, além de enfermeiros, técnicos em enfermagem, agentes comunitários, dentistas e auxiliares bucais, entre outros profissionais. Incluindo salários, encargos e despesas com manutenção e insumos, cada unidade necessita de cerca de R$ 50 mil por mês, segundo a secretária municipal da Saúde, Claudia Brum. O valor é menor em duas delas, onde há dois médicos cubanos, que são pagos pela União e recebem auxílio municipal de R$ 3 mil. O governo federal também ajuda a bancar os vencimentos dos 52 agentes do programa, cujos encargos ficam com a prefeitura.
Ainda assim, conforme Claudia, o auxílio para custeio é insuficiente, e as dificuldades financeiras se agravaram no último ano. De acordo com a secretária, o Estado tem seis parcelas de 2016 em atraso e a União soma duas, o que sobrecarregou a gestão municipal. Além disso, uma nova equipe, criada no ano passado, ainda aguarda credenciamento no Ministério da Saúde para poder receber recursos.
– Mantemos o serviço e vamos seguir até onde der, porque consideramos a atenção básica uma prioridade, mas não está sendo fácil. Esperamos que o Estado e a União façam a sua parte – desabafa Claudia.
As dificuldades financeiras não preocupam apenas a secretária, mas também a comunidade. Acompanhada desde a gravidez por uma das equipes, a manicure Gisele Santos de Souza, 29 anos, não abre mão do atendimento para a filha, Antônia, de 10 meses.
– Qualquer problema que surge, a gente corre aqui no posto. Eu ligo, e as meninas agendam consulta para o dia seguinte. Todo mundo já nos conhece – conta Gisele.
Com problemas de locomoção, diabetes e pedras na vesícula, o aposentado Aimoré Oliveira Castro, 74 anos, é visitado em casa sempre que precisa.Diz que é tratado como se fosse da família pelo médico Ediel Gonzalez Fernandez, 42 anos, e suas colegas Tatiane Lopes, 35 anos, e Aline Tassoni, 30 anos:
– Sem isso, eu com certeza já estaria morto. O atendimento é muito bom. Não pode faltar.