Ao menos dois dos três processos em que promotores e um ex-promotor de Santa Maria, ao lado do filho, denunciam pais de vítimas da tragédia da boate Kiss devem ter decisão ainda no primeiro semestre de 2017.
A projeção é dos advogados de acusação e defesa dos casos, consultados por ZH nesta terça-feira, e confirma que – caso os julgamentos sejam favoráveis aos membros do Ministério Público – os pais das vítimas serão punidos antes que haja condenação dos quatro réus por homicídio no incêndio de 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, que matou 242 pessoas. Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios da boate, e Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Augusto Bonilha Leão, da banda Gurizada Fandangueira, recorrem da decisão da primeira instância de mandá-los ao Tribunal do Júri. A decisão sobre o recurso no Tribunal de Justiça deve sair em dois ou três meses. Mas, depois, ainda cabe apelação ao Superior Tribunal de Justiça.
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Após enfrentarem a dor da perda de filhos na maior tragédia do Rio Grande do Sul, Sérgio Silva, Flávio Silva, Paulo Carvalho e Irá Beuren estão sendo processados por calúnia e difamação pelos promotores Ricardo Lozza, Joel Dutra e Maurício Trevisan, além do promotor aposentado João Marcos Adede y Castro e o filho dele, o advogado Ricardo Luís Schultz Adede y Castro. Pelo andamento das ações, apenas o processo contra Irá não deve ser concluído este ano.
Na semana que vem, ela participará da primeira audiência, enquanto os outros pais já passaram pela sessão que classificam como constrangedora. Abaixo, confira os argumentos de acusação e defesa e como está o andamento dos três processos, com base no que está nos autos.
Nenhum dos promotores aceitou conversar com Zero Hora.
Os processos
Caso 1
Presidente e vice de associação de familiares de vítimas da tragédia, Sérgio Silva e Flávio Silva afixaram cartazes em abril de 2015 com a foto do promotor Ricardo Lozza acompanhada do texto "O MP e seus promotores também sabiam que a boate estava funcionando de forma irregular." Antes da tragédia, Lozza conduziu inquérito sobre poluição sonora na Kiss, descobriu que faltava alvará e propôs termo de ajustamento. Os pais foram denunciados por calúnia. O juiz Leandro Sassi, da 4ª Vara Criminal de Santa Maria, julga o caso.
Acusação
Diz que houve intenção de denegrir a honra de Lozza "em larguíssima escala" ao associá-lo a ato inverídico.
– Reconheço a enorme dor das famílias, mas não posso deixar de reconhecer que, em nome disso, sua dor passe por cima da honra de Lozza – afirma advogado José Antônio Paganela Boschi, que representa o promotor.
Sobre possível desistência da ação, Boschi salienta:
– Se houvesse de parte dos pais sinal no sentido de reconhecer que Lozza não cometeu nenhuma ilicitude, não creio que não pudesse haver grande conciliação.
Defesa
Entrou com pedido de exceção da verdade, recurso específico para ações de crime contra honra, para provar que a frase dos cartazes estava correta. A apelação será julgada por desembargador sorteado do Órgão Especial do Tribunal de Justiça, pois Lozza tem foro privilegiado. A expectativa é de que decisão saia ainda no primeiro semestre. Caso o recurso seja negado, a ação principal também deve ser julgada até o meio do ano.
– Me sinto marginalizado – afirma Flávio, que perdeu a filha de 22 anos, Andrielle.
Caso 2
Irá Beuren, mãe de Sílvio, 31 anos, morto no incêndio, publicou no dia 6 de maio de 2015 artigo no Diário de Santa Maria no qual informa que Ricardo Luís Schultz Adede y Castro, filho do promotor aposentado João Marcos Adede Y Castro, virou advogado da Kiss depois da aposentadoria do pai, que atuava na promotoria quando a boate começou a ser investigada pelo MP por poluição sonora. Pai e filho entraram com ação indenizatória contra Irá por danos morais. O processo será julgado pelo juiz Carlos Alberto Ely Fontela, da 3ª Vara Cível de Santa Maria.
Acusação
Afirma que há clara intenção de criar situação difamatória sugerindo que pai e filho teriam "participado de suposto beneficiamento ilícito". Após ler o artigo, Ricardo "não conseguiu se concentrar em suas atividades".
Registrada como Irá Mourão Beuren, a mãe assinou o artigo como Irá Marta Mourão, incluindo seu nome de batismo, Marta, como é conhecida. Na visão da acusação, "é uma clara tentativa de se esconder". A denúncia pede retratação pública para "amenizar a dor e o sofrimento" de pai e filho e finaliza: "dizer que o artigo da referida ‘estragou o dia’ dos requerentes é muito pouco".
Defesa
A primeira audiência está marcada para 7 de fevereiro. Como o processo está no início, a estimativa é de que, dificilmente, seja concluído este ano. A advogada de Irá, Patrícia Michellon, diz que ela exerceu a liberdade de expressão sem ofender o promotor aposentado e o filho, pois apenas divulgou uma informação:
– A única saída desse processo é improcedência.
Marta conta que após ser intimada teve até vergonha de sair na rua:
– Não difamei, não inventei mentiras. Se enfrentei a morte do meu filho, outras coisas não vão me afetar.
Caso 3
Paulo Carvalho, pai de Rafael, morto aos 32 anos na tragédia, publicou dois artigos no Diário de Santa Maria em março e junho de 2015 nos quais fala do "corporativismo" e "protecionismo" dos promotores do Ministério Público, além da "fraqueza" do processo sobre as mortes no incêndio da boate.
Os promotores Joel Dutra e Mauricio Trevisan – que trabalhavam na investigação do caso – o processam por calúnia e difamação. A ação será julgada pelo juiz Fábio Welter, da 3ª Vara Criminal de Santa Maria.
Acusação
Diz que a "calúnia" – afirmar que os promotores nada fizeram contra servidores municipais indiciados no inquérito policial ou contra o colega Lozza – adquiriu "proporção mundial" ao ser publicada por Paulo também em seu perfil do Facebook. Frisa que o arquivamento parcial do inquérito foi "bem fundamentado pelos promotores de Justiça".
Advogado dos acusadores, José Antônio Paganela Boschi avalia que a sentença em primeira instância deve sair até junho:
– Os promotores não fizeram nada de errado, exercitaram na plenitude todos os seus deveres funcionais.
Defesa
Advogado de Carvalho, Pedro Barcellos afirma que o cliente jamais quis ofender os promotores:
– O crime de calúnia e difamação tem de ter dolo específico, vontade de caluniar. Não existe processo de calúnia nesse caso. Tenho certeza que cabe absolvição.
Carvalho, que vive em São Paulo, participou de audiência em 24 de novembro. Reclama da prepotência e frieza dos promotores:
– Imaginar que estou ali porque perdi o filho e ainda estou respondendo processo. Eles procuraram me colocar como criminoso.
*Zero Hora