Por Jane Tutikian
Professora de Letras, vice-reitora da UFRGS e escritora
Perdemos, no dia 7, Tzvetan Todorov. E, neste momento de crise em que vivemos, em que não conseguimos mais nos encontrar com os parâmetros religiosos, filosóficos, éticos e estéticos que regeram a humanidade por séculos, perdê-lo significa estarmos humanamente mais empobrecidos.
Nascido em 1939 na Bulgária e naturalizado francês, o filósofo, historiador, linguista e semiólogo Tzvetan Todorov foi um dos mais importantes pensadores da contemporaneidade. Suas obras, traduzidas para dezenas de idiomas, influenciaram a filosofia da linguagem, a semiótica, a literatura, a história da cultura e a história das ideias.
Coube a ele a redefinição dos conceitos fundamentais da Semiótica. Contribuiu, de forma decisiva, para o desenvolvimento do estruturalismo literário, na medida em que estabeleceu o elo entre a tradição formalista russa e o estruturalismo francês. Em outras palavras, atualizou as reflexões dos críticos formalistas à luz da linguística contemporânea, um passo fundamental em direção à Semiologia, a ciência geral dos signos. E, na esteira de Propp, Chklóvsky e Eichenbaum, trouxe importante contribuição para a descoberta das estruturas subjacentes a toda a narrativa.
É verdade que o estruturalismo foi, por um lado, abraçado de modo quase cego por seus seguidores, de outro, mas também recebeu muitas críticas e contestações. Foi, sobretudo, uma oportunidade de conhecimento e de debate de ideias por meio de autores e obras que, não fosse por Todorov, não teriam chegado, pelo menos não naquele momento, ao conhecimento do Ocidente.
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Espírito inquieto, entretanto, Todorov foi além, e criticou ele mesmo a radicalização e a exclusividade da imanência estruturalista. Que não se pense, porém, em contradição, mas num invejável amadurecimento intelectual. O Todorov do campo da História das Ideias ultrapassa e olha sem muita condescendência, embora reverenciando a ousadia de antes, o jovem estruturalista que foi. O marco da mudança é a década de 1980, com o lançamento de A Conquista da América: a Questão do Outro (1983).
Importante enfatizar que o Todorov historiador da cultura apreende de outra forma as artes e a literatura. Em A Literatura em Perigo (2009), além do formalismo, critica a tendência de se perceber o literário da perspectiva teórica do niilismo (a vida é o advento de um desastre e a literatura, uma negação da representação) ou da do solipsismo (o "si mesmo" é o único ser existente, a literatura fica impedida de representar o contexto humano e material). São posições redutoras e empobrecedoras do fenômeno literário e artístico. Há, portanto, uma compreensão mais profunda e rica do nosso tempo, do papel da arte, da literatura, da criação e da leitura. Ou seja: do papel da cultura numa época que define como de decomposição das identidades tradicionais.
"Em A Conquista da América, para saber como culturas muito diferentes se encontram, li as narrativas dos viajantes e dos conquistadores espanhóis do século 16, assim como os relatos dos seus contemporâneos astecas e maias. Para refletir acerca da nossa vida moral, mergulhei nos textos dos antigos deportados dos campos russos e alemães, isso me levou a escrever Em face do Extremo. A correspondência de alguns escritores me permitiu, em Les aventuriers de l’ absolu [no Brasil, A Beleza Salvará o Mundo], questionar o projeto existencial que consiste em colocar sua vida a serviço do belo."
Em A Beleza Salvará o Mundo, Todorov, a partir do relato de vida de três artistas, Oscar Wilde, Rainier Maria Rilke e Maria Tsvetaeva, historia as formas de absoluto terrestre de 1789 a nosso tempo, afirmando que podemos encontrar o sentido ou a beleza tanto em nossa vida pública quanto na intimidade, na solidão ou no amor, e que este é nosso legado do passado a ser levado para o futuro.
Uma de suas obras mais inquietantes é Os Inimigos Íntimos da Democracia (2012), um mergulho na corrosão do regime democrático no mundo, com a análise dos discursos que justificam guerras ditas humanitárias e da apropriação da palavra liberdade por partidos de extrema direita – o que representa um risco efetivo. Para Todorov, "a democracia está doente de seu descomedimento: a liberdade torna-se tirania, o povo se transforma em massa manipulável, o desejo de promover o progresso se converte em espírito de cruzada. A economia, o Estado e o direito deixam de ser meios destinados ao florescimento de todos e participam agora de um processo de desumanização."
Quanto ao ultraliberalismo, Todorov, em 2012, foi profético: "Os EUA encarnam uma forma ainda mais radical desse ultraliberalismo e, se nas próximas eleições americanas houver uma vitória do candidato republicano, temos um passo em direção a uma absorção quase definitiva do ingrediente social da organização pública e não sei se se pode falar de democracia neste caso... a destruição de todo o Estado de bem-estar social, de toda a social democracia, de toda a preocupação com o bem comum."
A crença no humano e nas relações da arte com a vida, não apenas espiritual mas cotidiana, com todas as implicações políticas e sociais, é seu maior legado. Ele reflete: "O que o homem fez ele pode desfazer." Há, sempre, portanto, na legitimidade das nossas buscas, uma possibilidade.